António Pinheiro

Profissional de marketing, músico e corredor por prazer. Corre na estrada, no monte e de um lado para o outro na vida, atrás e à frente dos filhos.

Trail da Raposa – 2016

Maio 31st, 2016

Não sei porque chamaram “da Raposa” a este trail. Na cultura popular, a raposa é o animal que ronda as quintas, com astúcia e matreirice para atacar animais de pequeno porte, como galinhas e coelhos.

À quantidade propriedades rurais e campos de cultivo que o Trail da Raposa 2016 contornou e, até, atravessou, o nome faz sentido.

Mas esta edição da prova que luta por se afirmar em Paredes fica marcada negativamente.

Aquando da primeira edição, fiquei com pena de não ter participado tantos foram os comentários positivos de colegas meus que fizeram a prova.

Daí, em 2015 ter arriscado na distância mais longa: ao início das inscrições 37km, a poucos dias da prova 43km e, no dia, quase 47 km.

(ver artigo completo sobre a edição do ano passado: https://www.antonio-pinheiro.net/a-ultra-da-raposa/)

No final da edição transacta esta determinado em não voltar à Raposa. No entanto, com a inclusão da Sky Marathon e com excelente comunicação que a prova tem, acreditei que os pontos negativos de 2015 se esbatessem e decidi inscrever-me na distância de 33km.

Por que é isso que todos nós esperamos na vida: evolução.

Mas não foi o que aconteceu. Com escassos 2-3 km de prova (não tinha a noção, dado que me esqueci de desligar o relógio no comboio… “why?”) os atletas da Ultra e do Trail Longo são enfiados num single track extremamente técnico, o que provocou um engarrafamento de fazer inveja à VCI num dia de acidente e chuva intensa. 1h. 1h parados sem conseguirmos dar um passo, enquanto víamos os atletas da frente subirem uma escarpa através de uma corda.

Ok… Trail é desafio e dificuldade mas seria aquilo necessário? Falei com pessoas que costumam fazer escalada nessa zona e que me confidenciaram que foi de uma total imprudência colocar esse obstáculo numa prova de Trail. Atenção! Foram especialistas em escalada que o disseram.

Não motivação que resista a 1h de paragem forçada.

Vários atletas começaram a voltar para trás, com o objectivo ou de desistir ou fazer a prova de 20km (que a poucos dias da prova passou a ser de 24km e que no dia revelou ter 26/27km).

Decidi fazer o mesmo, totalmente desanimado e revoltado. Felizmente, o trilho dos 33km encontrava-se ali perto. No entanto, já não era a mesma coisa. O primeiro abastecimento tinha ficado para trás. Não tinha noção nenhuma de quantos km tinha feito, ou faltavam. Isto porque raramente se encontrava alguém da organização e as poucas pessoas que víamos pareciam mais perdidas que nós.

Percebi que a coisa estava mesmo negra quando, a 10km da meta (supostamente), começo a ultrapassar atletas das provas mais curtas. Como era possível, com 5h de prova, tanta gente ainda ali estar?

Um caos.

Houve quem tivesse que beber água a saber a terra vinda de uma mangueira. Houve quem se perdesse ou até recebesse informações erradas de voluntários.

A entrega de dorsais foi das mais caóticas e desorganizadas a que já assisti.

Valeu pelo enorme desafio mental e pelas boas sensações físicas que o meu corpo transmitiu. Valeu pelo incentivo do Sérgio e do Merino logo no início.

Valeu por acabar por ser um bom treino para a Freita.

Valeu por ter a minha Teresa na meta à espera. Aliás, se conclui a prova foi por ela, porque ela merecia que eu cortasse a meta.

Agora, definitivamente, Raposa nunca mais!

Uma palavra final para os meus colegas de equipa Team Duas Faces. Parabéns a todos pelas suas prestações:

  • Nuno Sobral – 33km – 191º (108º escalão) – 6h00m52s
  • António Pinheiro – 33km – 201º (113º escalão) – 6h06m25s
  • Marco Ferreira – 24km – 15º (9º escalão) – 2h40m01s
  • Tiago Santos – 24km – 18º (12º escalão) – 2h41m15s
  • Sílvia Teixeira – 24km – 683º (89º escalão) – 5h02m14s
  • Prazeres Pires – 24km – 803º (57º escalão) – 5h24m23s

O Marco, o Tiago, a Sílvia e a Prazeres garantiram um 27º lugar por equipas ao Team Duas Faces.

Ultra Trilhos dos Abutres 2016

Janeiro 31st, 2016

Quando comecei a correr, ficava fascinado com os relatos que me chegavam das primeiras edições dos “Abutres”. Apesar da atracção que sentia pela prova, pelo que via em fotos ou vídeo e ouvia de viva voz dos participantes, nunca tive disponibilidade para participar na mesma.

Contudo, este ano, quase por milagre, consegui uma inscrição e arrisquei à distância mais longa. “Ah e tal… quem faz a Freita faz os Abutres!” e lá fui eu, achando que, mais coisa menos coisa, a prova chegava ao fim, sendo este o meu primeiro grande objectivo de 2016 (daqueles objectivos que não conto a ninguém, ou quase ninguém, e só revelo no fim do ano).

A irrepreensível organização colocou duas barreiras horárias: uma aos 29km (6 horas), outra aos 42km (9 horas).

Cedo, a primeira barreira horárias tornou-se, para mim, barreira psicológica. A partir do primeiro abastecimento, onde vi as primeiras desistências, sentia o relógio avançar mais do que as pernas. As subidas eram íngremes e as descidas muito técnicas, sendo poucos os troços onde se podia, verdadeiramente, correr.

Apercebi-me nessa fase que os Abutres não são para qualquer um e que esta prova não era para mim. A exigência do traçado requer treino e uma preparação cuidadosa, algo que não tem abundado por estes lados.

Comecei a sentir que iria ficar retido na primeira barreira e a desanimar bastante. Sabia de antemão que ia ser difícil chegar ao fim, mas fazer pouco mais que meia prova era pouco…

Apesar de triste e derrotado, decidi que, pelo menos, ia tentar, nem que fosse por um minuto, passar a malfadada barreira.

E às 5h52 de prova, 8 minutos antes do barramento, eu passei! Senti-me como se tivesse ganho a corrida. Comi duas sopas, aproveitei para descansar e arranquei do posto de abastecimento com os vassouras atrás de mim.

A partir daqui foi gerir o tempo e o esforço até à barreira seguinte, mais acessível e à qual cheguei confortavelmente (com meia hora de antecipação).

Anoiteceu e, quando eu pensava que já não havia mais nada que me fizesse soltar palavrões e mal dizer a minha vida, aparece um kilometro de lama, lama e mais lama. A sério? Eu já tinha ouvido falar da lama dos Abutres e até já apanhei muita lama nos trails, mas aquilo era de mais. Cheguei a estar enterrado na lama até aos joelhos sem me conseguir mexer.

Passa esta última tormenta e sentindo novamente os pés em solo firme, foi correr até à meta na qual entrei com 11h49, a festejar como se tivesse marcado um golo na final da Champions League!

E, neste ponto, tenho que realçar o papel da Organização. Para além de todo  o apoio durante a prova, esperam pelo fim da mesma, até ao último atleta. E celebram a chegada dos últimos como se fôssemos os primeiros, com aplausos, sorrisos e muito apoio! Obrigado, malta! Tive direito a entrevista e tudo (apesar de não conseguir dizer nada de jeito). Isto, em contraponto com provas em que começam a desmontar a meta antes dos últimos atletas chegarem, é de realçar.

E estava lá a minha Teresa, pacientemente, mais uma vez, com o melhor sorriso do Mundo.

Resumindo:
– se puder, voltarei aos Abutres, mas na prova mais curta. Ou então terei que treinar mais e melhor. Definitivamente, os Abutres não são para todos.
– é uma prova que se recomenda vivamente e cujo sucesso é plenamente justificado. A Organização é irrepreensível, a Serra da Lousã é lindíssima, os trilhos são únicos e há muito para ver nas redondezas. O Parque Biológico de Miranda do Corvo é uma preciosidade.
– numa altura em que proliferam provas de Trail, muitas com graves falhas organizativas, é bom constatar o esforço que a Organização dos Abutres fez para que nada falhasse e no profissionalismo que entregou ao evento, incluindo a parceria com a empresa de comunicação “Duas Faces”, para o desenvolvimento do Marketing da prova.

A Ultra Rainha

Junho 28th, 2015

É difícil adjectivar de forma sucinta o Ultra Trail Serra da Freita. Freita, apenas, para os trailers.

Escolhi “Rainha” pois é assim que a Serra se apresenta: Majestosa, Indomável, Impenetrável, Bela, Sedutora, Misteriosa…

Para quem vai pela primeira vez, não faltam relatos, histórias, fotografias, vídeos que avisam: “Não faças isso!”

Na verdade, tudo o que se sabe da Freita leva a que qualquer pessoa racional não se inscreva na prova. No entanto, os trailers não são pessoas normais, muito menos, racionais.

No meu caso, já tinha feito por duas vezes a prova curta e tinha uma vaga noção do que me esperava ao longo de 65km, pelas histórias de amigos e companheiros de corrida. E o cenário não era agradável.

Mesmo assim, após terminar o Ultra Trail do Paleozóico, decidi inscrever-me. O objectivo? O de sempre: chegar ao fim, feliz e realizado por mais um momento de superação.

E às 7h da manhã lá fomos. As duas distâncias mais longas (65km e 100km) partiram em conjunto.

Logo no início as sensações foram boas. Nos primeiros 10km, sempre a subir, o meu corpo reagiu bem, o que me fez sentir mais seguro e confiante. Confiança que aumenta quando encontro o Mestre Carlos Natividade e puxar por nós junto ao primeiro abastecimento.

Neste ponto, vejo um colega de corrida a “roubar” o telemóvel à mulher que o esperava e quase gritar: “Um beijo, mamã! Amo-te muito!” e devolveu o aparelho à mulher que continuou a chamada: “Minha sogra, ele está bem, 10km já estão feitos!”

Esta cena teve tanto de cómica como de emocionante. E eu desatei a correr.

No segundo abastecimento, lá estava novamente o Natividade: “Força, António! Hidratar bem e comer bem!” (como se fosse preciso mandar-me comer…)

Lá estava também o Grão-Mestre José Moutinho, pai do Trail em Portugal, grande Arquitecto da Freita. Alertava os atletas para a Besta que se aproximava, recomendava calma a todos e ainda disparava uns “piropos” para o pessoal dos 100km: “Se querem entrar na Elite, têm que enfrentar uma prova de Elite.”

Então, o que é a Besta?

Não adianta tentar descrever. Eu já tinha visto fotos, filmes e ouvido descrições em viva voz. Mas só lá estando é que sabemos o que é a Besta. Ora, imaginem uma infinidade de pedras sobrepostas, ao longo de uma subida com 1km de extensão, a qual temos que fazer praticamente de gatas e que eu demorei 1h12m a vencer. Pronto… é isso.

Ultrapassada a Besta, estavam feitos 30km. Quase meia prova. Era descer até Manhouce onde me esperava mais uma simpática equipa, onde pontificavam o Luís Pereira (Arquitecto do Paleozóico) e a Carmen Santos Lima.

Ao longo da descida, conheci 3 companheiros de prova: o “Colega de Lisboa”, o “Colega do Porto que trabalha em Beja” e o “Colega Enfermeiro”. Infelizmente, não lhes fixei os nomes, mas formamos uma boa equipa. Decidimos não forçar a barra, dado o calor que já era imenso e lá fomos partilhando histórias.

No abastecimento, os voluntários foram inexcedíveis. Para além de se oferecerem para nos encherem os reservatórios de água e darem todo o apoio que precisávamos, ainda nos deram dicas sobre o trajecto que se seguia e preciosas palavras de motivação. “Vai com calma, António. Está muito calor.”, disse-me a Carmen. E eu arranquei, deixando ainda os 3 colegas para trás. Logo no fundo da rua havia um rio. Não hesitei e enfiei-me lá dentro, com água quase até à cintura. Entretanto, sou apanhado pelo “Colega de Lisboa” e fomos juntos até outra zona do rio, onde se formava um pequeno lago. Sentados com os músculos de molho, vimos juntar-se a nós o “Colega do Porto que trabalha em Beja”. Ali ficamos uns bons minutos. E esta história foi-se repetindo a cada novo curso de água, tão reconfortante para as elevadas temperaturas que os nossos músculos e articulações atingiam. Aos poucos, foi-se juntando a nós uma personagem mítica da corrida em Portugal: Joaquim Adelino, com os seus 67 anos, lutava para, pela primeira vez na vida, concluir a Freita.

Chegamos ao tão ansiado abastecimento das bifanas, das minis e da canja. Aqui ficamos a saber que o “Colega Enfermeiro” tinha desistido. Voltamos a encontrar o Luís Pereira e fomos informados que íamos enfrentar 9km totalmente desprovidos de sombra e de subida permanente.

À medida que os kilómetros se iam sucedendo o “Lisboa” e o “Beja” iam ganhando terreno, enquanto eu ia fazendo parelha com o Adelino. A dureza e extensão da subida eram proporcionais à beleza da paisagem. Éramos pequenos pontos coloridos no verde da Serra que parecia absorver-nos com toda a sua Majestade.

É então que surgem duas novas personagens nesta História. Com o “Lisboa” e o “Beja” já lançados, encontramos o Pedro e o Joel. Seguimos juntos até ao final da subida, mas na descida para a Castanheira o Joel ganhou vantagem. Segui com o Pedro e o Adelino até à Mizarela onde eles ficaram a repousar mais um pouco e eu continuei até ao Parque de Campismo do Merujal, onde estava o último abastecimento: 53km. Nesta altura já tínhamos sido ultrapassados pelos dois primeiros da Elite.

Entretanto, o meu relógio ficou sem bateria e comecei a navegar “à vista”.

No PAC, o Joel esperava por nós. Era altura de tirar o chapéu e colocar a luz frontal. Anoitecia e começava a ficar frio. Por isso, arranquei na frente. Perto da interminável descida para a meta, o Joel alcançou-me e nunca mais o vi, a não ser no final.

Sentia o desafio ganho. Estava ansioso por falar com a Teresa e dizer-lhe como estava bem, mas rede de telemóvel… népia.

Nalguns momentos da descida corri como um louco, mesmo sentindo os dedos dos pés em ferida, mesmo estando perto do limite das minhas forças. Só não corria quando o piso não o permitia.

Entrei no Pavilhão tão desnorteado que até tive que perguntar onde era a meta!

O meu coração saltava, mas desta vez não era do esforço. Aquela “volta de honra” debaixo de palmas, soube-me como ganhar a Maratona Olímpica.

No palco da meta lá estava novamente o Luís Pereira, a Flor Madureira e mais gente a aplaudir e a tirar fotografias. Ao fundo, a Teresa sorria, com aquele sorriso que só ela tem e dizia ao meu pai pelo telefone: ele chegou agora!

Bolas, naquele momento eu queria saltar, rir, chorar, rebolar… sei lá! Mas só consegui fitar o olhar na sapatilha cheia de sangue… e no sorriso da Teresa.

 

A Ultra da Raposa

Junho 1st, 2015

Quando me inscrevi no Trail da Raposa, estava longe de imaginar o que iria passar nas serras de Paredes. Os 37km anunciados inicialmente, passaram para 42km por alturas da abertura das inscrições. A duas semanas da prova passaram para 43km. Sem stress. Gosto destes desafios e a distância mais longa do evento estava transformada em “ultra”, algo que fica sempre bem no CV de um atleta de pelotão.

Mas, ao fim de 10h de prova, de acordo com o meu relógio, eu completei 46,6km. Um bocadinho mais…

E o que se passou durante esses 46600 metros?

A ultra da Raposa teve um início estranho, com uma partida simbólica até à estação de comboios, onde apanhamos o peculiar transporte até ao local da partida real.

Sinceramente, não achei piada à ideia, principalmente pela confusão que se gerou dentro e fora do comboio e por ter atrasado ainda mais uma partida que, por si só, já era tardia, face às condições atmosféricas normais para esta altura do ano (começar uma prova de quase 47km depois das 8h da manhã? naaaah…).

Mas pronto… a corrida lá arrancou, já com o sol alto, a mente cansada da espera pela primeira partida, espera pelo comboio, espera pela segunda partida… enfim… o Trail não havia de ser uma coisa stressante. Mas o da Raposa estava a ser, ainda antes de começar.

Pouco tempo depois da partida “a sério”, começo a ser ultrapassado pelos atletas mais rápidos da distância intermédia, o que significava que havia pouco tempo de separação entre as duas provas, ou seja, mais cedo ou mais tarde, ia haver engarrafamento no monte.

E houve. Numa zona extremamente técnica, onde só se podia descer agarrado a duas cordas, estavam 1200 atletas. Fui empurrado, levei encontrões e o tempo a passar. A zona é belíssima, sem dúvida, mas como pode ser verdadeiramente apreciada nestas condições?

Cheguei ao primeiro abastecimento com 1h15 de prova. O tempo limite apontado no regulamento era de 1h30 e eu comecei a fazer contas de cabeça. A conclusão era óbvia: nunca iria chegar ao fim dentro do tempo limite, face ao que ainda tinha pela frente.

Iniciei uma luta contra o tempo, dificultada pelo calor e pelo percurso. Eram parcos os troços onde me sentia à vontade para correr. Arrisquei em descidas, mas as subidas e os longos trajectos técnicos atiravam-me para trás.

Chegado ao abastecimento dos 19km, tentei dar mais algum “gás”, dado que aos 24km viria outro abastecimento. Eram 5km de força. Mas… 24, 24,5, 25, 26… o abastecimento? Tinha desaparecido e eu quase sem água.

Já sem noção de tempo e espaço (o mapa constante do dorsal começava a não corresponder aos dados registados no meu relógio), entrei numa luta interior para levar a prova até ao fim, mas sem fazer nenhum disparate que pusesse em perigo a minha saúde. As pernas estavam bem, mas a cabeça não.

Estava eu nos meus dilemas internos, acabar ou desistir, vou ser barrado ou não, onde raio anda o abastecimento que desapareceu, quando aparecem dois senhores simpáticos a oferecerem água. “Agora é sempre a descer até Recarei e depois 13km até à meta.”

Nesta altura eu estava convencido que era o último, pois tinha perdido o rasto aos colegas que seguiam atrás e à frente.

Finalmente surgiu um abastecimento, já a corrida tinha passado os 30km (calculo…) e aí estava uma carrinha cheia de desistentes. “Nem pensar… Corre!” esta voz interior tornou-se mais forte quando ouço “O Eduardo vem aí…”. O Eduardo Merino, atleta vassoura da prova.

Comecei a correr feito louco, com uma força que não tinha. O facto do vassoura estar a aproximar-se dizia-me que eu era o último.

Não me recordo muito bem do que se passou a seguir. Lembro-me de um carrossel de subidas e descidas, uma dor lancinante na coxa direita (abençoado Ice Power), uma subida tipo “Elevador do Paleozóico”, um telefonema da Teresa que terminou comigo a chorar, longos quilómetros a correr ao lado da autoestrada e aquele barulho terrível dos carros permanentemente a passarem, uma zona de escalada em que fui literalmente de gatas, campos de milho, água, voltinhas dentro da cidade de Paredes, a Teresa a acenar ao longe, eu a correr em direcção a ela como se a minha vida dependesse disso, 3 pessoas com ar aflito a perguntarem por familiares que supostamente ainda estariam em prova, a meta, correr mais um bocadinho, a meta e finalmente o chão… finalmente a Teresa.

10 horas e uns trocos e a sensação de ter completado a prova mais dura que fiz até hoje.

E nunca o patrocínio da minha camisola fez tanto sentido: “Olimpo”.

O Zé. O Rapaz das Orelhas Grandes. O Charlie. A Hipocrisia.

Maio 12th, 2015

Vamos chamar-lhe Zé. Zé tinha um problema. Tinha vários até. Mas concentremo-nos “no” problema. Quando alguém aproximava as mãos, ou outro objecto, dos olhos de Zé, estes piscavam a uma velocidade frenética.

Os outros meninos descobriram isso e descobriram, simultaneamente, que era divertido ver os olhos de Zé piscarem qual iluminação de Natal descontrolada.

Então, os outros meninos vinham do outro lado da rua só para verem os olhos de Zé a piscar; faziam círculos no recreio, em volta de Zé. Era a galhofa geral. Zé acreditava que quando crescesse, os outros meninos iriam respeitá-lo, mas não.

No autocarro para a C+S, a cena repetia-se. Todos queriam sentar-se perto do Zé, não porque ele fosse um gajo porreiro, mas para poderem agitar os dedos em frente aos olhos de Zé e ver os famosos tremeliques dos seus olhos.

A vergonha e o ódio pareciam não ter fim na mente e no coração de Zé.

O azar do Zé foi ter vivido este martírio ao longo dos anos 80 e 90. Não havia bulling. Era normal os mais fortes gozarem com os mais fracos. Era normal os burros como calhaus gozarem com os bons alunos (Portugal e o seu culto pela mediocridade…). Mais um problema do Zé: até era bom aluno.

Ninguém queria saber. Para além da cena dos olhos, Zé ainda levou com uma alcunha pouco abonatória.

Um dia, chegou aos ouvidos do pai do Zé e da restante família. “Eles chamam-te isso e tu deixas? Impõe-te!” Mas como? Eles eram mais e mais fortes.

Zé não pediu nada daquilo. Zé nunca soube que aquilo ia acontecer. Zé não esqueceu nem vai esquecer. Zé lembra-se de todos eles, de cada rosto, de cada expressão de chacota, sempre que nos dias de hoje atinge (mais um) sucesso pessoal, profissional, desportivo.

Alguns, ainda se cruzam com ele na rua, no shopping, no Facebook e cumprimentam, acenam, como se nada tivesse acontecido. “Afinal, eram crianças… era normal.”

Hoje há o bulling e talvez o Zé não tivesse passado por este calvário sozinho, sofrendo em silêncio.

O rapaz das orelhas grandes foi ao Ídolos porque quis e sabia muito bem o que lhe poderia acontecer. O rapaz das orelhas atravessou a rua para junto dos meninos maus, porque quis. O rapaz das orelhas enfiou-se no meio do círculo de mauzões do recreio, porque quis. O rapaz das orelhas sentou-se junto aos bullies do autocarro, porque quis.

E depois? Não somos todos Charlie? Qual a diferença entre as caricaturas de Maomé e a caricatura do rapazinho do Ídolos? O que torna os jornalistas do Charlie Hebdo uns heróis e os tipos da SIC uns sacanas? Mas então há, ou não há, limites para o humor?

(é que outro dia não havia limites… e de repente começou a haver… sinto-me perdido e o Zé também)

Hipócritas. Todos são hipócritas. Como os rufias que pegavam com o Zé e hoje em dia até o elogiam no Facebook e o cumprimentam no shopping.

Consegui, carago!

Março 18th, 2015

Não me ocorria dizer mais nada, no passado Domingo, por volta das 17h45, quase 10h depois de ter partido do centro de Valongo para as serras envolventes.

Os Trilhos do Paleozóico, na sua versão ultra com 48km e 2500 D+, eram o meu primeiro grande objectivo de corrida para 2015. As dificuldades começaram na fase de preparação. Com pouco tempo para treinar, restou-me inscrever em todas as provas possíveis, para me ir habituando à “coça”.

Cheguei a Valongo com o Trail de Santa Iria (pior que algumas Ultras, dizem…) e a Ultra de Santa Luzia nas pernas.

Confesso que, à excepção de Santa Luzia, nunca senti medo de uma prova. Por isso, antes da partida estava tranquilo e confiante, apesar de tudo o que se diz sobre o “Paleozóico”.

O Luís Rodrigues tinha pedido “reboque” e eu queria ajudar, mas cedo percebi que ele ia sentir muitas dificuldades e eu queria chegar ao fim:

“Luís, isto é para chegar ao fim…”

“Então vai para a frente…”

Nos primeiros kilómetros fui olhando para trás, para tentar perceber o ritmo dele, mas no topo da serra de Santa Justa compreendi que teria que abdicar da companhia do Luís (desculpa, amigo…) para levar o meu barco a bom porto.

A primeira fase da prova foi bastante positiva. Estava a sentir-me bem e a desfrutar da prova como ela merece.

A dada altura ouço “Eeeeeehhhhh Duas Faces Alleeeeez! Duas Faces Allez! Duas Faces Allez! Duas Faces Alleeeeeez!” Lá vinha como uma bala o meu “Team Manager”, que optou pela prova de 23km, a “derreter” o João Colaço e com um avanço considerável sobre o Armando Teixeira! Ah, pois é! É só para verem a fibra do pessoal deste Team! (16º na classificação geral…)

“Vou usar-te como lebre!”

“Não faças isso que ainda tens muito que correr!”

As ultrapassagens dos atletas mais rápidos dos 23km fizeram-me abrandar o ritmo. Por mim passou o resto da comitiva Duas Faces, o Ricardo Dantas e o Rui Andrade, com quem troquei palavras de incentivo e até um comentário ao Benfica vs Braga da noite anterior.

Foi por esta altura que comecei a cruzar-me com o Ângelo Senra. Já o tinha visto noutras provas e sabia que ele tem um ritmo parecido com o meu. Era uma boa referência de andamento.

4h de prova, 24km percorridos. A Teresa liga-me e as suas palavras foram melhor que qualquer isotónico. Ela não se apercebeu, mas eu chorei do outro lado…

No abastecimento dos 28,5km a “fila para o autocarro”: uns 15 – 20 atletas à espera da carrinha da organização para desistirem (vim a saber mais tarde que nesse ponto desistiram 50 atletas). O Ângelo estava lá também, mas pronto para a luta. Chega o Paulo Serra e arrancamos os 3.

“O gajo vai a falar ao telemóvel, ou já está completamente maluco?”

A montanha dá para isto… mas o Ângelo ia mesmo a falar ao telemóvel.

O carrossel continuava e íamos trocando posições, até ao abastecimento da “crioterapia”. Lá estava a Celina Ferreira, irmã dessa grande máquina de montanha chamada Vitor Ferreira, cheia de boa disposição e palavras de ânimo. “Houve uns que se atiraram de cabeça!” (e o que se passou a seguir vocês já viram nas fotos…)

Estava na hora de enfrentar o pior…

Começava a luta pelo “pódio”. Íamo-nos revezando no “comando” da prova, até nos encontrarmos novamente no abastecimento da Doce Papoila. Aí, mais uma vez: “Eeeeeehhhhh Duas Faces Alleeeeez! Duas Faces Allez! Duas Faces Allez! Duas Faces Alleeeeeez!” O Team Manager da Duas Faces e CEO da Doce Papoila estava doido com a minha prova.

“Como estão as cãibras?”

“Zero?!?!”

“Sim. Nem uma. Estou é cheio de fome!”

“Os outros chegam aqui todos rotos e atiram-se para o chão… tu só queres comer!”

E desatei a comer como um alarve. Estava mesmo cheio de fome e de vontade de chegar ao fim.

Últimas palavras de apoio do Sérgio e da Ana Duarte e bora para o Elevador (ou Eleva a Dor).

Decidi que iria olhar o menos para cima e sempre para os pés, um atrás do outro. A tarefa de me concentrar no chão tornou-se complicada quando aparece o Carlos Natividade com a sua famosa sineta a incentivar o pessoal. Que momento épico de Trail! Nós ali… humildes maçaricos, a termos o grande Mestre a puxar por nós! Enorme!

Chegados ao topo, o Ângelo decidiu que a vitória era dele e arrancou (talvez auto-motivado pelo enxorrilho de palavrões que debitou durante a subida…). Eu e o Paulo decidimos “recuperar da subida”, leia-se “ir nas calmas”.

Quando a parte mais técnica da descida terminou, comecei a correr e levei o Paulo atrás de mim. O raio da meta nunca mais chegava.

“Só faltam 200m!”

Irra, que 200m intermináveis!

Mas então vi a Teresa, a minha sogra, gente que não conheço de lado nenhum (ou até conheço…) a aplaudir. Carago! A meta!

O Luís Pereira, grande arquitecto deste empeno de proporções épicas vem cumprimentar-me e eu nem lhe consegui dizer nada de jeito. Estava mais preocupado em parar o relógio, como se mais 20 segundos fossem fazer a diferença em quase 10h de aventura.

“Olha o Pinheiro! Tu não tens juízo?” Era o Rui Pinho, com um sorriso genuíno, feliz por me ver terminar… e que bem que me soube!

Depois, finalmente, a minha verdadeira meta: a minha Teresa!

O meu dia estava ganho. Só me apetecia dançar, rir, chorar, comer… Sentia que me ia dar qualquer coisa. Mas voltei a olhar para a Serra e senti-me simplesmente tranquilo e orgulhoso.

Consegui! Carago!

Éramos.

Março 14th, 2015
Éramos.
Poderíamos ser a seita, o grupo, a comandita, ter uma designação ou um nome qualquer. Mas simplesmente éramos.
Um laço misterioso nos unia. Para todo o lado, por todo o lado. Nas salas, nas escadas, em qualquer recanto do Conservatório, das sedes das nossas bandas e cafés adjacentes.
Quando não tocávamos todos juntos, íamos aos concertos uns dos outros e, no final, parávamos sempre no mesmo sítio.
Mal entrávamos, o rapaz já sabia que teria que servir “Príncipes” a todos, bastava confirmar o número de Cachorros, assim as parcas poupanças o permitissem.
Dos bolsos saía um ou outro cigarro.
E ali estávamos.
Um dia eu não tinha dinheiro. “Vamos à Praia de Salgueiros, tem lá um Bar fixe.”
“Mas eu não tenho dinheiro…”
“Não é por causa disso que vais deixar de curtir com o pessoal…”
E eu fui. E ele pagou… a mim e a toda a gente.
“Tu és tolo!”
“Gosto de ver o pessoal a curtir!”
A vida levou-nos para pontos distantes. Cruzamo-nos por aí. Porque o laço misterioso, chamado “Música” insiste em aproximar-nos.
Alguns são Maestros, Professores; outros apenas músicos nas horas vagas.
Casados, com filhos, sem filhos e recasados.
A Vida passou, mas quando os junta o tempo recua. Voltam a ser, aqueles.
Aqueles que, quando entravam no Conservatório ao sábado de manhã, os alicerces tremiam.
Alicerces em sentido lato do termo.
Ficavam por ali o todo dia. Mesmo que não tivessem uma única aula. Havia sempre uma sala livre para sessões de estudo colectivo (bonito eufemismo para descrever o que se lá passava…), havia sempre uma mesa no café e o centro comercial ali ao lado, com a apetecível sala de jogos a desviar-nos a assiduidade e os últimos trocos na carteira.
O tempo passou.
Já não há a sala de jogos. Há empregos, trabalho, famílias, responsabilidade. Mas também há por aí “Príncipes” e Cachorros: à Festas e Romarias onde o laço misterioso nos junta.

Texto dedicado a todos os meus amigos do Conservatório Regional de Gaia, nomeadamente aos colegas da Orquestra de Sopros e das quatro bandas filarmónicas de Gaia.

Pedra imperfeita

Janeiro 9th, 2015

Há um dia que acordas e levas um estalo.

Afinal não és o que julgas ou procuras ser.

És uma pedra imperfeita, brutalmente imperfeita que faz jorrar lágrimas, dos olhos de quem mais amas.

Dói mais, porque não te apercebes da dor que provocas.

Dói mais, porque não era suposto o choro na face de quem só merece sorrir.

Dói mais, porque não vives para ti.

Então a dor que provocaste torna-se a tua dor.

E a pedra faz ricochete. Acerta-te em cheio e dilacera-te a pele, a carne e o sangue jorra.

Dói mais, porque podias tê-lo evitado.

Dói mais, porque devias tê-lo evitado.

Convence-te que não estás só.

Convence-te que tu, agora, és quem amas.

Guarda o teu tesouro.

Cuida dele.

Se o perderes, perdes a vida…

 

António Pinheiro

Profissional de marketing, músico e corredor por prazer. Corre na estrada, no monte e de um lado para o outro na vida, atrás e à frente dos filhos.