Desde que comecei a correr que queria ir ao Grande Trail Serra D’Arga. Nunca dava. Por um motivo, ou por outro, Arga era sempre uma miragem. Até que, em 2017, ocorre este diálogo:
– Olha o Trail da Serra D’Arga… gostava de ir lá fazer os 33km…
– Passear? Vamos!
Inscrição feita.
Desde a Maratona de Sevilha que não me divertia tanto numa prova, principalmente pela sensação de liberdade que a mesma provocou, do primeiro ao último metro.
Liberdade.
Correr “desenfreadamente” pelos primeiros 5kms “descendentes”. Sentir a frequência cardíaca a subir, juntamente com todo o prazer que a corrida assim te dá.
– Caraças… o que se passa?
E ao km 5 as pernas não andam. Mas não andam mesmo. Sabem quando queremos correr num sonho, para fugir de algo ou alcançar algo, e não conseguimos? É isso.
– Vou desistir no abastecimento.
3km a lutar contra a falta de vontade das minhas pernas. Não andavam.
Abastecimento.
– Que se lixe… Mais um bocadinho.
E lá fui eu.
Liberdade.
Uma ultrapassagem, duas… e numa zona técnica!
– Isto afinal até está a correr bem…
Desce. Com “pedrinhas” como eu gosto.
– O que vem aí atrás?
Eram os primeiros da prova de 21km. Passam por mim como flechas. “Deixa-os ir que a minha corrida é outra.” Subir.
– Será que é desta que eu vou abaixo?
Nada disso.
– Faça como o seu colega Mário “Wilson”: entrar a matar, acabar a morrer!
(eu sabia que algum dia iam chamar Mário Wilson ao Mário Elson… coisas de se ter um nome estranho)
E a subida parecia não ter fim, mas tinha, num abastecimento. Já? 15km.
Comer, beber e ligar para casa. Entenda-se “casa” como o adorável bangalow que alugamos para o fim de semana e onde a prova até passava. Siga que é a subir.
Liberdade.
– Vou apanhar aqueles dois, mas com calma. Não vou atacar, mas não os vou deixar sair do meu campo de visão. E não posso ser apanhado por quem vem atrás.
É assim, quando corremos na cauda do pelotão. Temos que desenhar as nossas próprias batalhas mentais, para isto ter alguma piada.
Fim da subida. É agora!
Destravei o camião e lá fui eu: uma, duas, três, quatro, cinco, talvez seis… ultrapassagens.
Olha… está ali a casa! (sim, o bangalow).
– Amor, estou à porta!
E acho que toda a gente que eu tinha ultrapassado na descida passa por mim… incluindo aqueles dois.
Carago…
– Amor, estás a ver aqueles dois ali em baixo? Tenho que chegar à frente deles! Xau! Vai para dentro que está frio para o Edu!
Apanhei-os no abastecimento. Um arrancou primeiro que eu. Outro depois.
“Só” faltava a última subida. Aquela que me fez soltar um palavrão quando vi o gráfico altimétrico.
Formou-se no início da subida um grupo de 4. E começou a chover. Deixei-os ir na frente. Quando senti o ritmo deles a abrandar, avancei. Ficaram para trás e nunca mais os vi.
A chuva, o vento, o frio e o nevoeiro adensavam-se. Parar para vestir o impermeável ou seguir em frente?
Que se lixe o impermeável!
Liberdade.
Galguei a p*** da serra de t-shirt. Dentes serrados. A minha guerra ainda não estava ganha. Temia que, a qualquer momento, viesse alguém por trás (salvo seja…).
Olhava para cima e via pequenos pontos coloridos lá no alto. “Não olhes para cima, não olhes para cima…”
Um pé atrás do outro. Rápido para não ter frio. E mais uma ultrapassagem… e mais duas!
Ao chegar ao topo, um grupo ruidoso de apoiantes, por quem tinha passado em vários pontos ao longo da prova, fazia-se ouvir no meio do nevoeiro:
– Só mais 50m e a subida acaba!
Entre outros incentivos, aos quais consegui responder com um “Obrigado, pessoal!” (esta gente também merecia uma medalha!)
Para conseguir falar depois de uma escalada daquelas, eu devia estar mesmo bem.
Era agora ou nunca.
Havia torneiras e abasteci-me de água o mais depressa que consegui.
“Agora é sempre a descer… livra-te de ir a passo! Corre!”
O nevoeiro não me deixava ver mais de 10 metros à frente.
– Onde raio estão as marcações?
Volta para trás… anda em círculos…
– Eles não me podem apanhar…
Finalmente de volta ao trilho!
À medida que ia descendo, a visibilidade voltava ao normal e eu tentava acelerar.
Lutava agora contra mim próprio e o desgaste provocado pela anterior subida. Corria, mas com dificuldades em manter o equilíbrio. E mais uma ultrapassagem.
Música, barulho lá ao fundo… É já ali!
Telefone.
– Estou quase a chegar à meta. Já te ligo!
E aí estava eu de novo na Montaria! E o ruidoso grupo de apoiantes!
Uma enorme sensação de liberdade culminava ali. Braços abertos. Sorriso no rosto!
Foi assim a minha primeira Arga!