António Pinheiro

Profissional de marketing, músico e corredor por prazer. Corre na estrada, no monte e de um lado para o outro na vida, atrás e à frente dos filhos.

40km com a cabeça

Novembro 6th, 2019

Há um dizer popular, entre os corredores, que caracteriza de forma, mais ou menos, fiel o que se passa numa Maratona: 30km com as pernas, 10km com a cabeça, 2km com o coração e 195m com lágrimas nos olhos.

 

Para quem treinou mal, resume-se a 40km com a cabeça. Tudo o resto permanece, principalmente, os 195m de lágrimas nos olhos.

 

Por outro lado, o trajecto da Maratona do Porto obriga mesmo a um grande trabalho mental. Para além dos desgastantes retornos e da penosa ida ao Freixo, quem conhece a Cidade tem dificuldade em desligar da noção permanente do quanto falta para acabar.

 

Estar na marginal do Porto, a ver a marginal de Gaia, e pensar “tenho que ir ali e voltar…” coloca muito peso nas pernas.

 

Falo por mim, isto cansa. Acredito que a muitos colegas corredores tudo isto passe ao lado. Acredito também que este seja, eventualmente, o melhor trajecto possível. Mas, quem já fez maratonas “em círculo” sabe que há diferença.

 

Treinei pouco e treinei mal. Sabia que dificilmente andaria perto dos meus melhores tempos na distância (na casa das 4h30) e mesmo dos meus melhores tempos no Porto (na casa das 4h50). Sabia que a probabilidade de “encostar” era grande. Teria que pôr a cabeça a comandar muito bem as pernas. 

 

Nos primeiros metros, sem qualquer tipo de intenção, estava colado às “lebres” das 4h45. Estava-se bem ali, grupo animado, muitos estreantes na distância, um batoteiro (entretanto desclassificado) que cortou caminho e a meta, pouco acima das 3h de prova e os dois “pacers” com um ritmo incrivelmente certinho. Parabéns a ambos!

 

Estava-se bem ali. O rtimo era bom para mim e eu desfrutava da corrida. Ria e sorria. Até à zona do Porto de Leixões, onde me custou fazer a subida de forma tão lenta. Decidi ir para a frente e aguardar que o grupo me alcançasse de novo, para poder retomar o ritmo. Mas eu olhava para trás, não via as bandeirinhas e comecei a ficar cheio de pica. Erro crasso que me trouxe as primeiras dificuldades na zona da Alfândega. “Já?” 

 

A fanfarronice na corrida costuma dar maus resultados. Pelo caminho já tinha recebido o incentivo do Gonçalo, do Vitor e do Mário. Palavras, sorrisos, olhares que nos fazem correr mais.

 

É na Alfândega que recebo o incentivo do Bruno com a t-shirt da SiM Summit. Vinha à frente do grupo do Conde que literalmente voava por cima do alcatrão. Ia jurar que o Sérgio vinha ao lado dele, mais morto que vivo… não sei. O Conde fez 16º na geral, na sua primeira maratona.

 

O pessoal das 4h45 lá me apanhou na zona da Afurada e foram à vida deles. Não consegui vislumbrar ninguém do grupo inicial. Comecei a entrar na zona de maior sofrimento, que durou até ao retorno do Freixo. Pelo meio ainda deu para conversar com um estreante na Maratona do Porto (tinha feito 5h10 em Aveiro, mas já estava com câimbras), atender um telefonema da Teresa preocupada, dado que o live tracking estava a dar dados de 2018, e começar a planear como seria feito o resto da prova. Até ali tinha tudo controlado, em termos de tempo e esforço… mas a coisa começava a descambar rapidamente e eu até estudava o melhor sítio para desistir, para que a Teresa não tivesse muita maçada a ir buscar-me de carro.

 

Ainda em Gaia, uma gentil transeunte foi atropelada por um pequeno grupo de atletas. “A estrada é larga! Podiam ter-se arrumado!”. O passeio também era largo, mas é sempre mais radical passear num espaço onde está a decorrer uma prova desportiva.

 

“António, depois da ponte é para dar gás!”. Gritou-me um perfeito desconhecido que incentivava os corredores, tendo o cuidado de ler o nome dos dorsais. Uma das coisas que tem melhorado no público português desde que comecei a correr maratonas: as pessoas começam a perceber que é mais importante incentivar, do que reclamar pela estrada estar cortada ou o tradicional “se fossem masé trabalhar!”

 

Nos retornos da Afurada e do Freixo, ao olhar para quem vinha atrás de mim, apercebi-me que, afinal, eu nem estava assim tão mal. O Pedro gritou-me “Acredita!” e a Sandra dirigiu-me também palavras simpáticas que agora não recordo. 

 

Agora é sempre em frente. Corri sempre até doer. Quando doía caminhava. E caminhava até o corpo me impelir a correr de novo. 

 

A viagem entre o túnel da Ribeira e a Foz parecia a caminhada zombie da noite de S. João. A partir daí já se vê a meta e é um tirinho. O Luis Pires já vinha de bicicleta e gritou “Boa!”. A subida da Cicunvalação parece a Serra da Estrela e na última curva não contive as lágrimas que me acompanharam até ao fim. Tive que mandar arrumar o senhor da Rádio Festival que se meteu à minha frente. E a Inês, que estava nos pom-pons, ainda me deu um “high five”.

 

Depois da meta, percebi que o live tracking já funcionava, dado que a Teresa ligou de imediato. Eu não conseguia falar (eram lágrimas, mas vamos fingir que era apenas cansaço), mas conseguia ouvir o Eduardo “Papá! Tum tum tum! Papá! Tum tum tum!”

 

Fui dar um gole numa cerveja e duas de letra com o Morais e a Carmen. Estava feita a minha 10ª Maratona de estrada, com muita cabeça e muito coração. Quanto às pernas… quais pernas?

 

Já em casa, disse à Teresa que não voltaria a fazer a Maratona do Porto. Ela não aceitou a ideia e atirou “porque não?”

 

Porque não?…

 

Ver não é só olhar

Junho 19th, 2019

Manhã de sábado num shopping da cidade do Porto. Uma dezena de crianças brinca no parque de diversões interior. Observo os meus filhos, entretidos um com o outro e com os outros.

Uma menina dança. Interage pouco com os brinquedos e com as estruturas por onde as restantes crianças trepam, deslizam e escorregam. Ela dança. Abre os braços e rodopia. Ocasionalmente, corre. Salta. Uma criança a ser criança.

A mãe, como os outros pais que ali estão, vai alertando: “Cuidado com o bebé, tens um menino atrás de ti…”

Ela sorri e vai saudando as outras crianças. Distribui beijinhos. Uma criança visivelmente feliz.

A dada altura, o Eduardo vem ter comigo. Ela corre atrás dele. Baixo-me em direcção ao meu filho e a mãe da menina, ao meu lado avisa: “Cuidado com o bebé!”

– Olá! – diz-me a menina – como te chamas?

– Olá, sou o António.

– E o bebé, como se chama?

– Eduardo.

– Muito prazer conhecer-vos!

– Igualmente.

E, só neste momento, reparo em algo diferente nos olhos da menina. É cega.

Apesar disso, brinca com a maior naturalidade e exibe uma felicidade contagiante.

Mais impressionante, no bom sentido, é a naturalidade da mãe. Ao contrário do que muitas vezes vemos por aí, não faz questão de “exibir” a diferença da filha. Não tem aquele ar sofrido, de “coitadinha”. Não está permanentemente “em cima” da menina. Não exige mais cuidado aos outros. Pelo contrario. A dada altura, a menina chocou com outra e a senhora pediu desculpa ao pai.

“Desculpe, não foi por mal, a minha filha não vê.”

A criança continuou a brincar. Veio ter comigo mais algumas vezes.

– Sabes, está aqui um colchão. Contas até 3 para eu saltar para cima dele? Quando eu saltar fazes “weeeeee”!

Quando vínhamos embora, perguntei ao Lucas:

– Reparaste que estiveste a brincar com uma menina cega?

– Não… qual delas era cega?

 

Tantas lições em 45 minutos.

A mãe ensinou-nos que a igualdade é mesmo isso: naturalidade. É não querer mais, nem menos.

O Lucas, o Eduardo e as outras crianças ensinaram-nos que quando estamos a brincar, no fundo, a viver a Vida, o que importa é a atitude e não os meios que temos à nossa disposição.

A menina ensinou-nos que “ver não é só olhar”.

P.S. – “Ver não é só olhar” era o título do meu manual de Educação Visual do 5º ano. Fixei este chavão e uso-o muitas vezes.

Ainda sobre a abstenção

Maio 29th, 2019

Ponto prévio e para que fique já claro: acho que toda a gente deve votar e exercer a sua cidadania.

Contudo, mete-me impressão a facilidade e displicência com que os abstencionistas são julgados e condenados (e até insultados) em praça pública.

Por isso, e como no passado Domingo fui abstencionista por me ter informado mal sobre o voto antecipado, partilho convosco algumas opiniões sobre a abstenção, desmontando algumas das críticas feitas a quem não vota:

1 – “A abstenção é uma falta de respeito para com a democracia”

Não, não é. A Democracia deu-nos a liberdade de escolha. E há quem escolha não votar. Se até os deputados, na Assembleia da República, muitas vezes se abstêm em votações importantíssimas para o nosso País, porque é que o comum dos mortais não se pode abster?

Por outro lado, conheço muito boa gente que vai votar em todas as eleições, mas no fundo lida muito mal com a ideia de Democracia.

A Democracia não se resume ao voto.

2 – “Quem quer mudar as coisas deve ir votar”

Pois… por isso é que somos governados pelas mesmas caras, pelas mesmas cores, desde o 25 de Abril. Irónico mesmo é o partido que, por três vezes, levou o país à bancarrota, com as consequências que todos nós sabemos, continuar a ser o mais votado.

3 – “Quem não vota, não tem direito a reclamar.”

O tanas! Independente de votarmos, ou não, todos pagamos impostos, certo? Como eu li numa conhecida página do Facebook “a abstenção não me isenta de pagar impostos.” Portanto, qualquer português, que cumpra com as suas obrigações fiscais, independentemente de votar, ou não, tem direito a reclamar, sim, porque é o nosso dinheiro e o nosso trabalho, não o nosso voto que estão em jogo.

4 – “Quem se abstém são pessoas mal informadas”

Generalização. Conheço muita gente que se abstém deliberadamente e conscientemente e que, ao mesmo tempo. é muito bem formada e informada.

Já agora, tu que foste votar, conheces os nomes dos eleitos pelo partido onde puseste a cruzinha? Leste o respectivo programa eleitoral? Ou só votaste porque vês o partido como um clube de futebol?

5 – “O voto serve para garantir a democracia!”

Exacto. Por isso é que um “democrata” como o Bolsonaro está no poder no Brasil, vencendo umas eleições em que só houve 20% de abstenção. E o Trump não caiu do céu na Casa Branca.

6 – “Ao votar estamos a escolher quem nos Governa”

Errado. Tu escolhes um partido. As pessoas são escolhidas pelas máquinas partidárias e, como já se viu, a competência não costuma ser critério de primeira linha. Valem mais os laços familiares, as “cunhas”, as influências…

7 – “Quem não quer votar em nenhum partido, pode votar em branco.”

Esse argumento faria sentido se os votos em branco tivessem algum tipo de valor, por exemplo, considerando-os como se fossem um partido e atribuindo-lhes os respectivos mandatos, ficando posteriormente as cadeiras vazias. Aí, sim, o voto em branco faria sentido.

Nas eleições do passado Domingo houve mais votos em branco do que na CDU, no CDS e no PAN. Não é ridículo para estes partidos? Seria, se os votos em branco tivessem algum tipo de valorização.

É claro que, se todos votássemos, talvez as coisas fossem diferentes, mas ninguém pode afirmar que seriam.

Gostava de ter ido votar no Domingo, para dar o meu voto a um partido novo, que me tem atraído pelos seus ideais, desde que nasceu. Não foi possível. Não votei porque não pude, há quem não vote porque não queira e há quem não vote porque se está a marimbar.

Contudo, acho que a reflexão e a análise crítica deve ser feita sobre o sistema e não sobre os abstencionistas.

Simplesmente chamar “burro” a quem não vota, não resolve nada e é, ironicamente, anti-democrático.

Ponto final e para que fique definitivamente claro: acho que toda a gente deve votar e exercer a sua cidadania.

 

Chamei-te sem nome

Abril 23rd, 2019

Chamei-te sem nome

Para um amor que não sonhei

para um amor que queria

para um amor que ardia

 

chamei-te sem nome

e vieste

sem perguntas

e juízos

e juízo

porque o juízo…

…o juízo é amarra que não nos deixa voar

 

chamei-te sem nome

e amei-te

encontrei em cada centímetro de ti

todo o Universo de mim

 

chamei-te sem nome

sem palavras que nos aprisionassem

sem rótulos nem etiquetas

 

chamei-te sem nome

para te chamar Amor!

 

“São horas de irmos embora…”

Abril 22nd, 2019

Quando comecei a tocar em filarmónicas, há 25 anos, a despedida das bandas, no final dos serviços era uma coisa simples: uma duas marchas e a coisa estava feita.

Não satisfeitas com isso, algumas bandas começaram a introduzir as “laironas” tipo “Filhos da Nação” e quejandos. Momentos de grande entusiasmo e zero qualidade musical.

E eu disse:

“Qualquer dia ainda alguém se vai lembrar de cantar nas despedidas.”

E então vieram as “canções de despedida”.

E, um momento que costumava ser breve e rápido, começou a demorar uma eternidade.

Então, eu disse:

“Bem… agora só falta as bandas começarem a dançar nas despedidas…”

E a minha profecia cumpriu-se.

“…cumprimos nossa missão.”

Um amigo meu costuma dizer que “quem canta muito, toca pouco.”

“…iremos por aí fora, cheios de satisfação.”

Ok. Por mim, chega.

Ramos, Cruzes e Limpezas. Campaínhas e amendoas – parte 4

Abril 20th, 2019

Nem no Natal me levantava tão cedo. E quando digo “levantar” refiro-me a estar bem acordado e vestido com roupa nova, pronto a receber visitas.

Havia foguetes no ar e os sinos tocavam alegremente. “Vem aí o Compasso!”

E, azar do carago, a minha casa era uma das primeiras a receber a Visita Pascal.

Campainhas, opas vermelhas, cruzes floridas, alecrim pelo chão.

Cristo ressuscitou para todas as casas, mesmo para as mais humildes e, segundo os Evangelhos, era com os humildes que Ele gostava de estar.

Mas a visita era curta, porque a volta era longa.

Incrível como esperávamos um ano inteiro, a casa era lavada de alto a baixo, vestíamos uma roupa nova, para escassos minutos.

O som das campainhas partia para longe.

Depois, eram longas horas a matar o tempo, à espera que o meu pai regressasse da volta dele. Uma amêndoa debicada aqui, outra ali.

Perto da hora de almoço, começavam a voltar, a espaços, os sinos e os foguetes. As cruzes regressavam à Igreja.

“Será que é o pai? O pai já chegou?”

“Anda p’rá mesa, vamos comer!”

“Mas o pai ainda não veio!”

“Este ano ele chega tarde… ele come quando vier.”

A comida nem me sabia bem…

E então ele entrava em casa, cansado mas com a sensação de dever cumprido estampada no rosto.

“Quando for grande também quero ir no compasso!” (e assim aconteceu, durante vários anos em que fomos juntos. Nunca fui no compasso por mim, mas sempre por ele.)

Os bolsos do casaco repletos de amêndoas que ia recolhendo nas casas por onde ia passando.

“Toma lá…”

Depois do almoço, os meus pais sucumbiam a uma merecida sesta. Para quem trabalha na Igreja, a Semana Santa obriga a esforços suplementares, muitas horas de trabalho e ambos desunhavam-se para que tudo fosse perfeito. Mas ali, naquele momento em que se deixavam tomar pelo sono e pelo cansaço, era a própria mão de Deus que os embalava e lhes dava o agradecimento que tantas vezes faltava na boca dos homens. E eu era um filho orgulhoso e privilegiado por ter mim a mesma fibra humana daqueles dois exemplos de abnegação, entrega e humildade.

“Está a Páscoa passada…”

 

 

Ramos, Cruzes e Limpezas. Campaínhas e amendoas – parte 3

Abril 18th, 2019

A Sexta-Feira Santa da minha infância quase poderia ser descrita como o sinónimo perfeito de luto.

Ruas vazias, silêncio quase total. A rádio de minha casa, permanentemente sintonizada na Rádio Renascença, passava conteúdo religioso todo o dia. Oração de Vésperas Solenes, Via-Sacra… A música variada e de qualidade, que era apanágio da RR, dava lugar ao canto gregoriano.

Se, nos dias anteriores, brincar era difícil devido à desarrumação da casa, neste dia era praticamente proibido. “O Senhor morreu”, dizia a minha avó, como se de um parente directo se tratasse. Era proibido trabalhar, principalmente pregar pregos.

Era um dia tão negro que eu desejava que terminasse rápido e, principalmente, sem pesadelos envolvendo flagelações e crucificações, provocados pelos filmes passados todo o dia na TV e as notícias daqueles malucos nas Filipinas, que se auto-flagelam e crucificam.

E, enquanto viver, Sexta-Feira Santa será sempre sinónimo de ver o Papa João Paulo II agarrado a uma cruz no Coliseu de Roma.

Acordar no Sábado Santo era um alívio.

E este Sábado Santo (erradamente chamado Sábado de Páscoa), mesmo estando ainda “o Senhor Morto” era já o prelúdio da festa do dia seguinte.

A casa começava a voltar à sua forma, o cheiro do óleo de cedro, dava lugar ao Brise. No chão tapetes novos, ou imaculadamente lavados. Os brinquedos voltavam ao sítio “agora não desarrumes tudo!”. A programação televisiva ganhava uma tonalidade menos sangrenta e havia roupa nova preparada para estrear na manhã seguinte. A renovação a acontecer.

Abriam-se os primeiros pacotes de amêndoas e chocolates, espreitávamos as caixas de pão-de-ló, “mãe, vais fazer pudim?”

Da “Maria Cancela” vinha a melhor regueifa doce de todos os tempos.

O verde monótono da Quaresma e do Domingo de Ramos dava agora lugar a jarras coloridas.

Quando, à noite, partíamos para a Vigília Pascal, já ia com o coração a palpitar. A Igreja, mesmo com as luzes totalmente apagadas, voltava à sua cor e vida normais, com toalhas e flores nos altares. “Eis a Luz de Cristo! Graças a Deus!”

Graças a Deus chegava o fim do recolhimento Quaresmal, da obrigatoriedade de comer peixe às sextas-feiras, do sangue da Paixão.

Boas-vindas aos foguetes, aos sinos festivos, à alegria, aos doces, ao assado no almoço!

Era Páscoa!

Ramos, Cruzes e Limpezas. Campaínhas e amendoas – parte 2

Abril 17th, 2019

Após o Domingo de Ramos, iniciava-se o quase total desmantelamento da minha casa. Janelas sem cortinas, chão sem tapetes, loiça fora dos armários… Cheiro a pó e a óleo de cedro.

A Páscoa repercutia no lar o seu significado bíblico. A Passagem da Morte para a Vida, das trevas para a luz, do Inverno para a Primavera. Jesus limpou os pecados do Mundo. A minha mãe limpava a casa de fio a pavio. Arrumavam-se definitivamente as roupas de Inverno. Saíam das arcas as roupas de Verão.

Estando de férias, tornava-se difícil brincar, porque estava tudo de pantanas e eu não podia desarrumar mais… o que já estava desarrumado.

E havia que cumprir o preceito religioso.

Lembro-me da primeira vez que fui obrigado a ir à Igreja no Tríduo Pascal (para os menos familiarizados com estes termos, são as cerimónias religiosas de Quinta-Feira Santa, Sexta-Feira Santa e Sábado Santo, respectivamente: Missa da Ceia do Senhor, Celebração da Paixão do Senhor e Vigilia Pascal).

Nunca fui muito de desobedecer às ordens dos meus pais. Mas naquela noite refilei um bocadinho. Queria ficar em casa e não embarcar numa cerimónia chata.

– Anda que vai ser bonito – disse a minha mãe.

E foi. Logo na primeira noite, de contrariado passei a fascinado por todo aquele cerimonial. A solenidade, a reverência, a força da música, a austeridade e o silencio do final da celebração (o altar é despido da toalha e demais adornos e a missa termina sem canto).

Foi uma experiência espiritual verdadeiramente intensa, mesmo para uma criança.

O Sacrário fica aberto, vazio, e o “corpo de cristo” é transladado para um altar lateral.

A Igreja fica ainda mais fria, obrigando-nos a viajar no tempo, para o Monte das Oliveiras, para acompanhar a prisão do Cristo e o seu julgamento.

Começa ali a Sexta-Feira Santa…

António Pinheiro

Profissional de marketing, músico e corredor por prazer. Corre na estrada, no monte e de um lado para o outro na vida, atrás e à frente dos filhos.