António Pinheiro

Profissional de marketing, músico e corredor por prazer. Corre na estrada, no monte e de um lado para o outro na vida, atrás e à frente dos filhos.

CONVÉNIO – A Tortura

Julho 26th, 2020

“Basta!”

A voz de Pôncio trovejou pelo Salão. O líder máximo da Lux abandonou a postura cavalheiresca e assumiu-se como líder militar que era. Os seus olhos chispavam de fúria e todo o seu rosto estava tenso.

David sentiu o toque, mas não o demonstrou. O seu cinismo tinha um objectivo.

Míriam tremia com medo que sobrasse para ela. Ester sorria.

E mais motivos ganhou para sorrir quando…

“Ester, Míriam, levem-no! Sabem o que têm a fazer!”

Naquele preciso momento, David conseguiu antever tudo o que iria acontecer de seguida e preparou a mente e o corpo.

Desde que a entrevista começara, concentrar-se mais no passado e menos no futuro, mas agora tinha que estar alerta. Não podia esquecer que estava preso no covil do lobo e que qualquer passo em falso seria a sua destruição.

Ester e Míriam manietaram-no e conduziram-no a uma sala totalmente branca, sem janelas e cuja porta desapareceu após entrarem.

O que se passou nos cinquenta e três minutos seguintes pode ser descrito como um massacre. Ester descarregou toda a sua fúria naquele que ainda era o amor da sua vida e que ainda a amava. Míriam permaneceu a um canto, a tremer e a chorar.

Contudo, David não sentia qualquer dor, nem o seu corpo apresentava escoriações, nódoas negras ou um simples arranhão. Nada. Aceitava os golpes de Ester, sem reagir, sem sequer se defender.

E, ao fim de cinquenta e três minutos, aquela que amava aquele que maltratava, caiu prostrada, exausta, sem forças, juntando o seu choro ao de Míriam. David estava de barriga para baixo. Até poderia parecer morto se não se tivesse levantado calmamente. Sem dizer uma palavra caminhou na direcção de uma das paredes, como se ela não existisse e atravessou-a como se ela não existisse. Do mesmo modo que se tinha levantado como se não tivesse sido saco de pancada durante cinquenta e três minutos.

Do outro lado da parede, esperavam-no vinte guardas que, de imediato lhe apontaram as armas.

“Pôncio, queres continuar a ouvir a história, ou terei que fazer a estes o que não fiz à Ester?”

CONVÉNIO – O Ataque e a Ressureição

Junho 28th, 2020

“Finalmente, chegamos ao ataque.”

“Sim. Era um dia de festa. Pela primeira vez usávamos a nossa farda, convivíamos livremente com os restantes membros da Convénio. Havia comida e bebida. E podíamos voltar a casa.

Um dia esplêndido!”

“Sim. Escolhemos esse dia, precisamente, por estarem lá todos. Iam morrer todos de uma vez. De uma vez por todas: como escaparam?”

Pela primeira vez, a voz de Pôncio assumia um tom negro, maléfico. Já não era o militar cortês que recebera David com um aperto de mão. Uma espinha com vinte e três anos a perfurar-lhe a garganta. Um plano perfeito que falhou.

“Apesar da festarola, eu não conseguia largar a Betel. Diga-se de passagem que, de farda, ficava ainda mais apetecível. Mas o que me prendia eram os olhos, esquivos, furtivos… Ela e as amigas pareciam deslocadas da festa e, a dada altura deslocaram-se mesmo. Perdi-as de vista. Chamei os outros e corremos tudo à sua procura. Tinham desaparecido. Essa busca afastou-nos do Palácio e do jardim frontal onde caíram as primeiras bombas.

A Convénio estava totalmente desprotegida e foi apanhada de surpresa. Não houve qualquer reacção. Mas nós, como estávamos afastados, conseguimos reagir. Pegamos em armas e começamos a disparar para o desconhecido.

Corremos em direcção ao campo de sangue que se estava a formar, enquanto o Palácio desmoronava. Havia gritos, membros amputados que voavam em todas as direcções, sucessivas ondas de calor, um calor que nos impedia de respirar raciocinar.

Procuramos ver de onde vinha tudo aquilo, mas o fumo, o pó…

Os gritos… acho que o pior foram os gritos…

E o sangue… havia sangue por todo o lado…”

Na audiência havia sorrisos de escárnio. David fraquejava e isso dava-lhes força. Ester chegou a rir baixinho.

“Mas escaparam…”

“O Saúl apareceu. Todo ele era uma papa de sangue, só nos gritou para fugirmos para o lago das traseiras e a seguir morreu à nossa frente. Por entre cadáveres e moribundos fugimos para o tal lago. Os projécteis caíam à nossa volta. O Palácio era já uma ruína. Espreitei por cima do ombro e vi as vossas tropas a avançarem. Corremos como pudemos, já com algumas balas a passarem-nos junto aos ouvidos.

Então, chegamos ao lago e fizemos a única coisa que podíamos fazer: mergulhamos.

O lago era profundo. Os clarões das explosões penetravam na água. Mergulhamos em direcção ao fundo, sendo absorvidos por uma imensa escuridão.

Continuamos a descer até que, aos poucos, a luz voltou. No leito do lago havia uma porta. O Miguel já lá estava à nossa espera. Quando estávamos os quatro juntos, abriu a porta e caímos para um espaço totalmente seco, onde a água do lago não entrava. Já não ouvíamos mais nada.”

“E que espaço era esse?”

“Um pequeno átrio. De onde nasciam umas escadas que subiam em espiral. Atrás de nós a porta desapareceu. Não tínhamos alternativa a não ser seguir as escadas.”

“E depois?”

“Subimos aquilo que eu calculei como sendo o equivalente a uns dez andares. Pensei que estaríamos a subir novamente à superfície do lago, mas a seco.

A imensa escadaria desembocou numa sala hexagonal, não muito grande, mas onde poderíamos circular à vontade sem andarmos aos encontrões.”

“E o que havia nessa sala?”

“Como disse, a sala era hexagonal. Duas paredes eram de vidro, de alto abaixo e, pasme-se do outro lado um salão muito parecido com este?”

“Era o Palácio da Convénio?”

“Exacto.”

“Mas tinha sido destruído!”

“Oooops…”

CONVÉNIO – A Recruta

Junho 28th, 2020

Começava a instalar-se um burburinho na sala e Pôncio teve que, mais uma vez, impôr o seu poder. David sentia que ainda ia causar uma rebelião ali dentro. Estava tudo a correr como planeara, mesmo que isso, eventualmente, lhe custasse a vida.

“David, tenho grande respeito por si, mas essas provocações…”

“Não são provocações. São factos. Imagine o que era estarmos aqui todos, calmamente, a conversarmos e, de repente, explosões, sangue, muito sangue, partes de corpos pelo ar, vísceras… Aquilo que parecia ser um sonho ter-se tornado num pesadelo.”

“Era precisamente aí que queria chegar. Como sobreviveram ao ataque?”

David deixou o olhar perder-se nas memórias, na dor que o consumia. Falava para todos, mas também para si próprio.

“Como sobrevivi a estes vinte e três anos? Como vocês que aqui estão sobreviveram? Como a Ester e a Míriam ainda não estão mortas? A resposta nos livros, nos filmes é coragem. Mas todos sabemos que é o medo que nos mantém vivos. E nós tivemos muito medo. Por isso hoje estou aqui. Estamos aqui.”

“Ou seja, fugiram!”, ironizou Pôncio.

David recuperou a postura. Sentiu a sua fraqueza. Queria dominar. Precisava de tempo para o que estava para vir. Tinha que contar a história toda. Tinha.

“Para perceberem o que se passou nesse dia, é preciso voltar um pouco atrás, novamente.”

Quando chegamos ao Palácio da Convénio, fomos os quatro instalados no mesmo quarto. Como já tinha dito, eu e o Emanuel éramos velhos amigos, longe de imaginarmos esta peculiaridade em comum. O Caleb era o mais calejado. Já trabalhava, apesar de ter a nossa idade era substacialmente mais maduro. Também tinha tido uma infância complicada. O Miguel esperava entrar (e entrou!) em Engenharia Mecânica nesse ano. Era de uma calma que enervava. Mas, consequentemente, era o mais lúcido e clarividente. Já eu, enervava-me facilmente. Precisei de muitas lições de controlo emocional.”

“E sobre o Emanuel? Não tem mais nada a dizer?”

“Ainda somos amigos, mesmo depois de ele ter trabalhado uns anos para vocês e ter tentado matar-me, também… Mas perecebo-o. A Isabel era bem jeitosa e, pelos vistos, dava-lhe tudo na cama. Não o censuro ter preferido a ela do que a mim.”

David retomou a história.

“Após os três primeiros meses no Palácio, em que nós e os restantes recrutas tivemos as mesmas aulas, o mesmo treino, fomos agrupados segundo as nossas competências e foi a partir daí que começou a correr mal.”

“A correr mal? Vocês não eram os melhores entre todos os recrutas?”

“Sim e não. Sim, tínhamos talento, não, não nos enquadrávamos muito na ética da Convénio que, a nosso ver, era demasiado branda.”

“Vocês queriam sangue…”

“Queríamos Justiça. Precisei de muitas aulas de controlo emocional. E o que aconteceu depois deu-nos razão.

Como estava a dizer, fomos agrupados nas Divisões tradicionais da Convénio: o Caleb para a Divisão Operacional, o Miguel para Engenharia, Tecnologia e Comunicações, eu e o Emanuel para Inteligência e Informação, que é como quem diz «Espionagem». E, como disse, foi a partir daí que começou a correr mal.”

“Mas porquê?”

“O Caleb bebia demasiado, o Emanuel apaixonava-se demasiado e eu era muito distraído o que, para um espião, é mau.”

“E o Miguel?”

“Era o único que escapava.”

“Tiveram problemas?”

“Muitos. Muitas lições de controlo emocional. Não fosse o Miguel pôr-nos na linha e não tínhamos chegado ao fim. Na prova final, foi o Miguel que nos orientou. Fizemos um brilharete e foi-nos augurado um brilhante futuro.”

“Essa prova…”

“Era de combate, com fogo real. Houve feridos e por pouco não tinha morrido gente… antes tivesse morrido…”

“O que quer dizer com isso?”

“Pensei que soubesse.”

“Não.”

“Tive a vida da Betel nas minhas mãos. Se a tivesse morto, o ataque, uma semana depois, não teria acontecido. Verdade?”

“Perceberam que ela era a nossa espia no vosso meio?”

“Percebi que não era flor que se cheire. Por isso, não a perdi de vista e a vista até era agradável, mas eu pressentia que algo não batia certo. Mas as lições de controlo emocional…”

O país é demasiado pequeno…

Junho 24th, 2020

É a frase repetida exaustivamente por aqueles que são contra a regionalização, bairrismos, picardias entre regiões, ou o simples orgulho pelo local onde se nasceu e/ou vive.

“Ah… tu nem és do Porto!”, ouço igualmente muitas vezes.

Nasci em Mafamude e vivi quase 40 anos em Crestuma. Entretanto, já morei em Olival e agora em Pedroso. Tudo em Vila Nova de Gaia. É só atravessar o rio. O mesmo rio que banha as duas cidades.

O mesmo rio que serve de cenário aos festejos de S. João.

Estudei cinco anos no Porto e desde 2002 que lá trabalho. Casei com uma portuense nascida em Santos Pousada, freguesia do Bonfim, que tem Santa Clara como padroeira.

Talvez isso não faça de mim portuense (nem quero), mas não posso amar uma cidade que me diz tanto e onde passo mais de oito horas do meu dia?

Não posso amar a cidade onde estudei, amei, chorei e cresci como ser humano?

Posto isto…

Sim, Portugal é um país demasiado pequeno para guerras internas. Mas é igualmente demasiado pequeno para haver tanta desigualdade entre Lisboa e o resto do País. O problema de Portugal e que me leva a ser defensor convicto da regionalização, não é Lisboa vs. Porto. É Lisboa vs. o Resto do País, de Trás-os-montes ao Algarve. Do Algarve à Madeira e aos Açores.

Face a outras regiões sistematicamente esquecidas por sucessivos governos, o Porto nem se pode queixar muito. Não por qualquer benesse que venha da Capital, mas porque em séculos de história sempre teve que fazer das Tripas Coração e remar contra a maré. E com isso cresceu e tornou-se o que é hoje.

Desde a história das tripas, passando pelo Cerco e pelas invasões francesas, que o Porto e as suas gentes tiveram que dar o corpo ao manifesto pela Cidade e pelo País. Sim, pelo País.

A História está escrita. Queiramos saber lê-la e interpretá-la.

E quando falamos em Porto, falamos nas cidades que orbitam as suas fronteiras e que com ele têm uma relação visceral, de Espinho a Vila do Conde.

Veio a Pandemia e o Porto levou com a primeira onda de choque. As inúmeras relações comerciais com Espanha, Itália e até mesmo a China, enfiaram o vírus directamente nas veias do Norte de Portugal. Porque o Porto alimenta as zonas industriais de Vila Real a Aveiro.

E em Lisboa, sentados no seu trono imperial, chamaram-nos de tudo e mais alguma coisa. O Porto agonizava. Lisboa troçava.

Mas, aqui, não ficamos “a ver se chove”. Enquanto o Ministério da Saúde e a DGS deitavam as mãos à cabeça, o Porto fechou, mostrou como se faz. E, desde logo, soubemos que, este ano, o S. João era à varanda, à janela, no quintal.

Era, seria, foi no único sítio onde faz sentido: no coração dos portuenses, gaienses e de todos aqueles que nesta noite iriam folgar pelas ruas.

O Expresso veio dizer que não. Foi um enterro, dizem eles.

Um país tão pequeno e não conheceis os vizinhos.

Hoje, a DGS, lançou o seu apelo para os cuidados a ter na noite de S. João. Hoje, quando estamos todos de ressaca e ficamos a saber que Lisboa nos passou à frente nas estatísticas mais tristes da Pandemia. Bravo!

Mas, voltando atrás…

Enquanto o Ministério da Saúde e a DGS deitavam as mãos à cabeça, o Porto fechou, mostrou como se faz. Rui Moreira saltou para a frente da batalha. Andou pelas ruas. Enquanto que, com uma mão, pedia-nos para ficar em casa, com a outra impediu que nos impusessem novo Cerco. Porque o Porto não é só Porto. E de Vila do Conde a Espinho, há pessoas que trabalham no Porto, recorrem aos hospitais do Porto, precisam do Porto.

A tempestade parece ter passado e o Porto começou a abrir. Mas à vontade, não é à vontadinha.

O espectáculo da superstar do confinamento foi adiado (adiado… imaginem se fosse cancelado) e caíu qualquer coisa para os lados da Sampaio e Pina em Lisboa. Quando somos os reis da empatia, temos destas coisas. Sentimos as dores dos outros, mesmo que os outros não se queixem. Mesmo que seja só um arranhãozinho no joelho.

Uma frase de Rui Moreira foi retirada do contexto, por alguém que tanto usa as redes sociais para se insurgir contra o mau uso das redes sociais, e voltaram a atirar-nos com o rótulo de parolos e incultos, fanáticos por futebol, ignorando que, por exemplo, até já houve concertos na Casa da Música, por estes dias.

Eles não sabem, nem sonham o que é ser do Porto.

Vai ficar o futebol, dizem eles. Mas curiosamente foram eles que se insurgiram quando, mais uma vez, Rui Moreira, tentou adiar o tal jogo de futebol.

Uma no cravo, outra na ferradura.

S. João, Santo António, e todo o coro celestial cantaram a Karma Police bem alto na noite de ontem.

CONVÉNIO – O Convite

Junho 21st, 2020

O salão estacou.

De cachimbo numa mão e whiskey na outra, David media cada rosto e preparava-se para, perante os seus inimigos, desfiar a história dos seus últimos vinte e três anos.

Pela primeira vez, desde sempre, aludiu à sua patente militar, ainda para mais com o objectivo de reclamar um privilégio. Mas, sentindo a sua vida perto do fim, decidiu ironizar na cara daquela gente que ansiava por lhe deitar a mão.

A audiência dividiu-se entre a estupefacção e a fúria. O desplante do maior inimigo de todos eles. Ester estava prestes a rebentar mas, ali, era a última a falar. Não pertencia à Lux, era agente mercenária, como já tinha sido da Convénio e só por grandes favores na cama de Pôncio podia assistir à cena. Por sua vez, Miriam tremia de medo e de dor, com receio de cruzar, novamente, o seu olhar com o de David.

David começou:

“Verão de 1997. Estava em casa a matar tempo, entediado até aos ossos. A minha vida fora sempre assim. Enquanto os meus amigos namoravam, praticavam desporto, eram músicos, iam de férias com os pais, eu ficava em casa a ler, ver televisão ou, simplesmente a fazer nada!”

Havia dor e rancor na voz de David. Era visível que as memórias que o assaltavam não eram boas.

“As minhas namoradas eram as miúdas da TV ou as modelos do catálogo La Redoute.

Naquele dia, a meio do mês de Agosto, a campainha tocou perto da hora de jantar. Nem me mexi. Os meus pais estavam em casa. Ouvi vozes e, passados uns segundos, a minha mãe chamou-me e, pelo tom de voz, percebi logo que a coisa não era boa.”

Pôncio interrompeu:

“Nós estamos familiarizados com os métodos de recrutamento da Convénio. Por favor, avance!”

“Não! Se não entenderem isto, não entendem nada!”

David, arriscava. A sua voz era já imperativa.

“Estava a dizer… A minha mãe chamou-me à sala. Para além dos meus pais, encontravam-se lá mais quatro pessoas: um homem de fato e olhar distante, um militar (calculo que Marechal… general, no mínimo), um padre (pelo menos, usava gola eclesiástica) e o Saúl, que viria a ser o meu Mentor na Convénio.”

“Sabe os nomes, ou o papel, dos três desconhecidos?”

“Vim a saber mais tarde que eram as Esferas. Apenas isso. Nenhum deles abriu a boca enquanto lá estiveram.”

A existência das Esferas sempre fora um mito para a Lux. Mas Pôncio acreditava na sinceridade de David. Sentia-o no seu íntimo.

“Então… sempre existem.”

“Eu vi-as. Disseram-me quem eram, acreditei. E, depois disso, estiveram em cada segundo da minha vida. Mas… continuando…

Fiquei, como é claro, surpreendido com a cena. O meu pai torcia os dedos das mãos, visivelmente triste, prestes a romper em lágrimas. A minha mãe avançou para a explicação do que se estava a passar.

Pelos vistos, poucos dias depois de eu nascer, aqueles três homens desconhecidos apareceram lá em casa com outro. Na altura foi o outro que falou. Disse aos meus pais que eu era uma criança especial e que deviam proteger-me ao máximo até eu completar 18 anos. Em troca, a minha família iria receber uma generosa quantia em dinheiro, ao longo desses anos e mais ainda ao chegar à maioridade legal e poderiam orgulhar-se do meu futuro brilhante.”

“Disseram a si, ou aos seus pais, porque era especial?”

“Não. Só soube depois, ao chegar à Convénio. Mas voltando à história…

“Nunca disseram aos meus pais porque é que eu era especial. Mas o dinheiro fazia muita falta. Éramos pobres. Os meus pais sofreram muito com o fecho das indústrias nos anos 80. Nunca ganharam mais que o salário mínimo. Eu preparava-me para ir para a faculdade e falei nisso mesmo. Aí, foi o Saúl que falou. Disse-me que eu poderia ir para a faculdade na mesma e fazer a minha vida normal, mas iria passar a morar com eles, indo a casa no Natal e no Verão. Ou seja, aos dezoito anos ia, finalmente, para um colégio interno… quase…”

“E como reagiu a isso?”

“Honestamente? Pensei… «que se lixe!» A minha vida era um tédio, finalmente acontecia algo inesperado e, aceitando o que me estavam a propor, poderia dar alguma folga financeira à minha família… era muito dinheiro!”

David acentuou a palavra «muito».

“E quando foi conhecer a sua «casa» nova?”

“No dia seguinte. O Saúl apareceu à minha porta, num carro espectacular, vidros fumados… Senti-me um gajo mesmo VIP. Lá dentro já vinha o Miguel, no caminho íamos buscar o Emanuel e, por fim, porque morava mais longe, o Caleb.”

“Já conhecia algum deles?”

“O Emanuel. Era meu amigo de infância. Fiquei tão contente, como surpreendido quando o carro guinou em direcção a casa dele.”

“E depois?”

“Fomos para a nossa nova casa e, depois de vocês nos tentarem matar a todos, fizémos a vossa vida negra durante anos!”

CONVÉNIO – A Audiência

Junho 14th, 2020

“Mas o que vem a ser isto?”

Uma voz forte, colocada e afectada, num certo tom “dandy”, ecoou nas profundezas do seu cérebro.

Abriu os olhos e deu por si esfarrapado, no centro de um imenso salão, rodeado por quatro sombras, iguais às que o tinham capturado.

Percebeu que era a sua hora.

“Este homem é o mais alto oficial da Convénio. É nosso inimigo e prisioneiro mas, pelo cargo que ocupa, deverá ser tratado com respeito e dignidade. Levem-no para um banho e para vestir uma roupa lavada e digna. Depois, terei todo o gosto em o interrogar.”

A voz continuava afectada e determinada. David conseguiu sentir a fúria dos soldados que o tinham prendido. Afinal, ele tinha mandado uma série de companheiros deles desta para melhor, não só agora, mas ao longo de muitos anos.

“Olha… lá estão elas…”

O semblante gélido de Ester, contrastava com o ainda presente esgar de dor de Míriam. Não deveria passar tão cedo e não deveria ter passado muito tempo desde que desmaiara.

Fingiu-se fraco, sem forças e deixou-se arrastar pelos soldados.

Levaram-no para um quarto (uma cela?) com cama e uma casa de banho anexa, com um pequeno chuveiro. Havia toalhas e roupa. De facto, não seria um prisioneiro comum e a estadia naquele Palácio seria, no mínimo, interessante.

Tomou um banho retemperante e vestiu as roupas que lhe deram. Calças de ganga simples e uma t-shirt com o símbolo da organização estranha e pouco secreta que agora o capturava: um sol, cortado a meio como se estivesse a surgir no horizonte, com doze raios a despontar para o céu e as letras LUX.

Havia também uma mesinha com chá e café. Serviu-se do chá, do qual era apreciador.

Esperou.

Alguns minutos depois, quatro soldados, visivelmente aborrecidos vieram buscá-lo e levaram-no por uma sucessão de corredores ao imenso salão onde já tinha estado. Percebeu que estava reunido o Estado-Maior da LUX e que, à sua frente, num vistoso trono, sentava-se o dono da voz forte e colocada, o “dandy” que chefiava a estranha e pouco secreta organização, há décadas, talvez séculos.

“David! Finalmente encontramo-nos!”, quase gritou o Grão-Mestre, levantando-se do trono e estendendo a mão em direcção a David.

“Peço desculpa pelos modos dos meus soldados e por não ter conseguido uma farda digna da sua patente mas, muito honestamente, desconheço como são actualmente as fardas da Convénio. Deixe-me dizer-lhe que, apesar de adversários, é uma honra apertar-lhe a mão! Os seus feitos, precedem-no e são admiráveis, mesmo que isso tenha custado muitas vidas à nossa organização.”

David não estranhou os galanteios do homem que tinha à sua frente. Sabia que estava a ser sincero. Pôncio – assim se chamava a personagem que parecia ter parado algures na Revolução Industrial – era famoso por gostar da táctica, da estratégia, do combate, mais do que do resultado final das batalhas.

Apesar de inimigos, o Grão-Mestre da Lux cumpria um escrupuloso código de guerra, que ambas as organizações estranhas e pouco secretas, herdaram de lutas milenares.

Estendeu a mão e retribuiu:

“É uma honra, senhor.”

“Sabe, David, os meus homens, se pudessem, já o tinham morto, não sei antes o torturarem primeiro. Afinal, foram mais de vinte anos de lutas e o senhor ceifou muitas vidas da Lux e não só. Confesso que, também eu, estou ansioso por o castigar e fazê-lo pagar por tudo o que nos fez. Mas antes, sinto que devemos falar sobre tudo o que se passou, não acha? Acho-o uma pessoa fascinante e, neste momento, vale-me mais vivo que morto.”

E, por incrível que pareça, tudo isto foi proclamado num tom jovial. David quase que imaginou um copo de brandy na mão direita de Pôncio.

O diálogo era observado atentamente por Ester e Míriam que ocupavam uma posição lateral. Os oficiais da Lux tentavam, incomodamente, manter a pose do seu líder, mas nos soldados era visível o ódio. David estava a ser analisado de alto abaixo e conseguia ler os pensamentos de todos no salão.

“De facto, temos muito para falar, tanto que serão necessários vários dias.”

“É verdade, meu caro, é verdade. Mas, como sabe, temos, literalemnte, todo o tempo do Mundo.

Podemos começar por umas pequeninas questões?”

“Força.”

Era chegada a hora. Sabia perfeitamente o que lhe iriam perguntar e como iria responder. Portanto, relaxou e divertiu-se.

“Porque se deixou apanhar?”

“Foi uma missão ordenada pelas Esferas da Convénio.”

“As Esferas? Sempre achei que fossem um mito… Então… existem mesmo… e estão a rastreá-lo? São capazes de o vir buscar?

“Como acha que sobrevivemos após o ataque ao Palácio? Foi obra das Esferas. Eu sou obra das Esferas. Quanto ao rastreio, desliguei-o pouco antes de desmaiar.”

“Mas assim, a sua missão deixa de fazer sentido. O objectivo era descobrir onde estamos, certo?

“No momento em que aceitei a missão, deixou de ser da Convénio e passou a ser minha.”

“Porque não matou a Ester e a Míriam?”

“Seria bom de mais para ambas. Quero que a Ester perceba que vale zero à minha beira e que a Míriam sofra mesmo muito.”

“Aqui dentro não vai conseguir nada disso.”

Assim como no jardim, Míriam irrompeu numa gritante agonia de dor. Armas apontaram à cabeça de David mas, ali dentro, o Grão-Mestre tinha poder absoluto.

Pôncio pareceu perder um pouco da portura:

“Não acha pouco cordial atacar um dos meus soldados, na nossa própria casa?”

“Peço desculpa. Foi um reflexo.”

“Porque se desligou da Convénio?”

“Estou farto. Cansado.”

“Não acredito.”

“Pense na minha história, ponha-se no meu papel, sentirá o mesmo que eu.”

“Talvez… Por falar nisso. Está na hora de nos contar tudo. Quantas pessoas compõem a Convénio neste momento?”

“Uma. Eu. Há depois agentes que recruto conforme as missões. Mas já não confio em ninguém.” E olhou para Míriam que se recompunha do último ataque.

“Não acredito.”

“Acha que, na minha posição, iria mentir? Basta um estalar de dedos e eu morro aqui dentro. Na verdade, não tenho nada a perder. Estou nas vossas mãos.”

“Verdade. Admiro a sua coragem e frontalidade.

Tragam uma cadeira a este homem. Vamos ter muito que conversar. Por favor, comece do início. Fale-nos do ataque ao Palácio.Como sobreviveu? Como é que as esferas o salvaram?”

“Sugiro começarmos antes disso. Como fui recrutado. Peça para me trazerem um bom whiskey e um cachimbo, por favor. Já que não tem direito a uma farda decente, David Henriques, Marechal da Ordem Convénio, reclama algum privilégio digno da sua patente militar.”, disse, imitando despudoradamente o tom de voz do seu interlocutor.

CONVÉNIO – A captura

Junho 13th, 2020

“David… juro que não te entendo…”

“Mas vais entender, em breve. Vinte e três anos a, literalmente, dar o corpo às balas, a tudo. Estive quase morto uma série de vezes, vi a morte de frente e mesmo do outro lado. E agora, chegas aqui e pedes-me para me entregar.”

Saúl ficou em silêncio, pois sabia que era verdade. David tinha sido o melhor recruta que já alguma vez tinha visto. O seu futuro como soldado seria, certamente, promissor. Sem dúvida que chegaria a oficial, a líder. Mas tudo se precipitou naquela tarde de Junho, há vinte e três anos, quando o Palácio da Convénio foi atacado e destruído. David fora lançado às feras e agora era um guerreiro solitário que continuava a manter viva a alma de uma organização mais estranha que secreta.

“Eles estão a chegar… Depois dos primeiros cinquenta vêm cem… Já estou habituado a levar no lombo.”

“David, não tornes isto mais difícil.”

“Aviso já: depois de estar lá dentro as coisas serão à minha maneira.”

“Como assim?”

A quietude do jardim foi interrompida por um burburinho de passos, muitos passos. De todo o lado ergueram-se sombras. Os cinquenta.

Da mesma forma que tinha aparecido, Saúl desaparecera. David permanecia calmamente no seu banco de jardim. Fechou os olhos e conseguiu ver claramente os seus cinquenta captores. Em poucos segundos poderia destruí-los, mas a sua mente fixou-se em duas figuras femininas que observavam a cena de longe: Ester e Míriam.

Ambas já tinham trabalhado para ele. Cedo, Ester deixou-se seduzir por uma carreira a solo, trabalhando quase exclusivamente para a organização estranha e pouco secreta que agora o tentava prender. Míriam tinha-o ajudado em várias missões, mas deixou-se seduzir por Ester e acabou por entregar aquele que nunca poderia ser encontrado.

Abriu os olhos e procurou a sua antiga agente. Ela fitava-o ao longe, com o rosto manchado pela culpa. Ester exibia o seu semblante orgulhoso por, finalmente, subjugar o seu antigo chefe. Achava ela…

David sorriu quando cruzou o olhar com Míriam. E, nesse momento, uma dor excruciante invadiu o corpo da mulher. De alto a baixo, cada célula era dor, levando-a a tombar, enquanto se contorcia em espasmos e gritos. Os soldados, apanhados de surpresa, começaram também a cair.

David permanecia calmo e sorridente. Ester avançou em fúria sobre ele, mas um buraco abriu-se sob os seus pés.

“Está na hora de animar isto…” pensou David.

O cenário era bizarro.

Cinquenta soldados fortemente armados, gritando como bebés aflitos, no chão. Uma mulher enterrada com a cabeça de fora, sem se conseguir mexer. Outra mulher num patamar de histeria, para lá da loucura. E um homem calmo, observando a cena a rir às gargalhadas.

“Assim vai ser difícil cumprir o plano do Saúl…”

A sua mente soltou os soldados e iniciou a luta com cada um deles. Os cem já vinham a caminho e, apesar da sua infinita calma, lutar contra cento e cinquenta operacionais, não era fácil. Portanto, tinha que começar a eliminar alguns e depois deixar-se levar, quando o cansaço começasse a retirar-lhe o discernimento. E era importante manter Ester dominada. Acima de tudo, não queria ser preso por ela. Preferia morrer ali mesmo.

O que aconteceu nos minutos seguintes, seria facilmente descrito como um banho de sangue e cabeças decepadas. David, fez o que tantas vezes tinha feito e que até já podia fazer de olhos fechados. A sua espada, que tinha usado pela primeira vez numa noite de Inverno, há vinte e três anos, dançava e rodopiava em todas as direcções, mas com critério bem definido: pescoços.

Mas David nunca deixou de ser humano e os humanos cansam-se. Estava na hora de cumprir o plano e deixou-se atingir, uma, duas, três, muitas vezes… Antes de perder os sentidos conseguiu ver Ester a sorrir e a sair do buraco onde a tinha enfiado. Pelo menos não fora ela quem o prendeu. Via também os espasmos de Míriam a pararem e a jovem recuperar um pouco da lucidez. Viu sombras levantarem-se sobre si. Perdeu o domínio do corpo, da mente e a luz do dia apagou-se.

CONVÉNIO – O banco de jardim

Junho 11th, 2020

Sentou-se no banco do jardim. O mesmo banco de jardim onde, nos últimos tempos, recebia as missões.

O Chefe chegava, ou melhor, aparecia e começava a falar. Falavam muito, como irmãos. Nem pareciam chefe e subordinado.

Mas ele não era um subordinado qualquer. Era único. O último.

Vinte e três anos depois de ter sido recrutado para uma estranha e secreta entidade, mais estranha que secreta, ele era o último. E o Chefe. Personagem etérea que se materializava ao seu lado nas mais estranhas ocasiões, sendo aquele jardim o seu local de eleição.

Outras vezes era quando conduzia.

Naquela tarde, como em tantas outras tardes, sabia que tinha que estar ali. Sabia também o que iria acontecer de seguida, mesmo antes de o Chefe lhe pedir a mais dura das missões, aquela que, como ele, seria a última.

A sua mente vagueava entre o passado e o futuro. Entre tudo o que aconteceu nos últimos vinte e três anos e o que aconteceria nos três meses seguintes.

Finalmente a sua aprendizagem estava concluída e, em breve, o Chefe deixaria de ser Chefe, porque a sua existência, simplesmente, deixaria de ter sentido.

“Boa tarde”.

“Boa tarde, Chefe.”

“Nunca me chamaste «Chefe»…”

“Foi a primeira e a última vez. Acredita, foi mesmo a primeira e a última vez, Saúl.”

“O que queres dizer com isso?”

“Diz-me tu, ao que vens.”

“Tenho uma missão muito importante para nós…”

“Nós? Quem? Eu? Tu? Ou o que resta daquilo a que em tempos pertencemos?”

“Ainda pertencemos, David. Nunca poderás sair do Convénio.”

“Que Convénio? O Convénio morreu, há vinte e três anos, naquela tarde. O que restou depois daí foram quatro putos deslumbrados e assustados. E agora resto eu. E tu.”

“Sabes muito bem que não… tens Agentes…”

“Pára! Que Agentes? As que, neste mesmo jardim, me juraram fidelidade eterna, mas que depois fugiram ou me traíram. Até Cristo teve mais companhia no cimo do Calvário.”

O silêncio instalou-se. Saúl, o Chefe, tinha sido um verdadeiro Mentor de David. Mas este não era mais um adolescente destemido. Tornara-se cerebral e conseguia agora racionalizar tudo o que lhe tinha acontecido, desde que tinha sido recrutado pela Convénio.

“Diz lá… que queres que faça?”

“Precisamos que te entregues. Daqui a pouco, chegará a este jardim uma equipa deles para te levarem. Precisamos que te deixes prender, para te monitorizarmos lá dentro. Pode ser a grande oportunidade para a Convénio voltar a ser o que era…”

“E como é que eles sabem que aqui estou? Eu não sou rastreável. Nunca fui. Por isso é que ainda aqui ando a deambular…”

“Foste traído…”

“…mais uma vez e desta vez pela Miriam.”

“Como sabes?”

“Do mesmo modo que sei que a Ester vem com ela e cinquenta marmanjos, soldados rasos. Os burros ainda não aprenderam que não me apanham assim, mas eu entro no teu teatrinho.”

“David… o que se passa que eu não sei?”

“Vinte e três anos comigo e não me conheces, não me viste crescer, lutar contra esta gente e, acima de tudo, evoluir. Os cinquenta que aí vêm, não vão sobreviver para contar a história e juro-te que a própria Míriam vai desejar ter morrido.”

António Pinheiro

Profissional de marketing, músico e corredor por prazer. Corre na estrada, no monte e de um lado para o outro na vida, atrás e à frente dos filhos.