Vamos chamar-lhe Zé. Zé tinha um problema. Tinha vários até. Mas concentremo-nos “no” problema. Quando alguém aproximava as mãos, ou outro objecto, dos olhos de Zé, estes piscavam a uma velocidade frenética.
Os outros meninos descobriram isso e descobriram, simultaneamente, que era divertido ver os olhos de Zé piscarem qual iluminação de Natal descontrolada.
Então, os outros meninos vinham do outro lado da rua só para verem os olhos de Zé a piscar; faziam círculos no recreio, em volta de Zé. Era a galhofa geral. Zé acreditava que quando crescesse, os outros meninos iriam respeitá-lo, mas não.
No autocarro para a C+S, a cena repetia-se. Todos queriam sentar-se perto do Zé, não porque ele fosse um gajo porreiro, mas para poderem agitar os dedos em frente aos olhos de Zé e ver os famosos tremeliques dos seus olhos.
A vergonha e o ódio pareciam não ter fim na mente e no coração de Zé.
O azar do Zé foi ter vivido este martírio ao longo dos anos 80 e 90. Não havia bulling. Era normal os mais fortes gozarem com os mais fracos. Era normal os burros como calhaus gozarem com os bons alunos (Portugal e o seu culto pela mediocridade…). Mais um problema do Zé: até era bom aluno.
Ninguém queria saber. Para além da cena dos olhos, Zé ainda levou com uma alcunha pouco abonatória.
Um dia, chegou aos ouvidos do pai do Zé e da restante família. “Eles chamam-te isso e tu deixas? Impõe-te!” Mas como? Eles eram mais e mais fortes.
Zé não pediu nada daquilo. Zé nunca soube que aquilo ia acontecer. Zé não esqueceu nem vai esquecer. Zé lembra-se de todos eles, de cada rosto, de cada expressão de chacota, sempre que nos dias de hoje atinge (mais um) sucesso pessoal, profissional, desportivo.
Alguns, ainda se cruzam com ele na rua, no shopping, no Facebook e cumprimentam, acenam, como se nada tivesse acontecido. “Afinal, eram crianças… era normal.”
Hoje há o bulling e talvez o Zé não tivesse passado por este calvário sozinho, sofrendo em silêncio.
O rapaz das orelhas grandes foi ao Ídolos porque quis e sabia muito bem o que lhe poderia acontecer. O rapaz das orelhas atravessou a rua para junto dos meninos maus, porque quis. O rapaz das orelhas enfiou-se no meio do círculo de mauzões do recreio, porque quis. O rapaz das orelhas sentou-se junto aos bullies do autocarro, porque quis.
E depois? Não somos todos Charlie? Qual a diferença entre as caricaturas de Maomé e a caricatura do rapazinho do Ídolos? O que torna os jornalistas do Charlie Hebdo uns heróis e os tipos da SIC uns sacanas? Mas então há, ou não há, limites para o humor?
(é que outro dia não havia limites… e de repente começou a haver… sinto-me perdido e o Zé também)
Hipócritas. Todos são hipócritas. Como os rufias que pegavam com o Zé e hoje em dia até o elogiam no Facebook e o cumprimentam no shopping.