António Pinheiro

Profissional de marketing, músico e corredor por prazer. Corre na estrada, no monte e de um lado para o outro na vida, atrás e à frente dos filhos.

Dias do fim – parte 14

Maio 30th, 2020

A crónica de hoje é diferente.

Ao longo dos últimos 78 dias, em linha com as actividades propostas pelo Aniquibebé, creche frequentada pelo meu filho Eduardo, fui registando num diário as suas brincadeiras, actividades, curiosidades… um pouco de tudo o que ele ia fazendo cá por casa.

Esta é a última página desse diário. Escrita por mim, obviamente, mas tentando ver as coisas da perspectiva dele.

Serve também para, sem qualquer tipo de obrigação, mostrar a nossa (minha, da Teresa e do Eduardo) gratidão ao Aniqui e às suas incríveis profissionais, que souberam responder da melhor forma a todos os desafios levantados pelo COVID-19.

É bom saber que entregamos o nosso filho a estas mãos e a estes corações que choram, riem e amam connosco.

«ANIQUI- À DISTÂNCIA DE UM ABRAÇO – O FIM

Lembro-me dos últimos dias. O papá deixou de poder entrar no Aniqui. Tínhamos que desinfectar as mãos. As coisas começaram a ser diferentes.

Lembro-me do último dia.

Os papás foram buscar os meus amigos mais cedo. Havia algo de diferente. Ao fim do dia, como em tantos outros dias, eu era o único menino, à espera do meu papá. Mas, naquele dia, tão estranho, não estava sozinho. Todas as funcionárias do Aniqui estavam lá comigo. A Tete, as minhas Isabéis… É claro que me senti importante. 

Então, o pai chegou.

Como sempre, tentou animar-me e ficou feliz por me ver, mas os seus olhos estavam diferentes. Assim como os olhos da Tete, das Isabéis e das outras…

Parece que ninguém sabia muito bem o que dizer, ou fazer.

O papá, levou embora a minha mochila, a bata e todas as minhas coisas do Aniqui. Até parecia que nunca mais voltaria e percebi isso na despedida. “Até um dia destes…”

Não foi um até amanhã, ou um bom fim de semana, ou um boas férias.

Ninguém ali, naquele momento, sabia quando eu iria voltar ao Aniqui e rever os meus amigos.

Também os olhos do papá estavam diferentes.

Em casa, os papás explicaram que andava na rua um “bichinho” muito mau e que teríamos que ficar em casa durante algum tempo.

Olha que bom! Passar o tempo todo com os papás…

Os dias tornaram-se diferentes, mas sempre com o Aniqui presente. Quase todos os dias era acordado com notícias da Isabel, da Belinha, da Tete…

Foram canções, jogos e brincadeiras.

Houve um dia especial. A Belinha mandou um vídeo a cantar-nos a canção dos bons dias, como se estivéssemos na sala. Reparei que, à medida que canção ia-se aproximando do fim, os olhos dela iam ficando diferentes.

O mesmo se passou noutras ocasiões com a Isabel.

Mas eu gostava de as ver e matar saudades.

Também via as fotos e vídeos das brincadeiras e trabalhos dos meus amigos.

Todos os dias, mesmo em casa, estava no Aniqui.

Os papás ainda tentaram que eu fosse fazendo as actividades… mas eu tenho o meu feitio. Desculpem.

Quando alguém fazia anos, os amigos apareciam todos em quadradinhos no computador do papá e cantávamos os parabéns.

E todos juntos construímos uma história, que teve direito a banda sonora composta pelos papás.

Já para o fim, eu estava cansado e preguiçoso. O ritmo do teletrabalho dos papás foi aumentando. Mas o Aniqui nunca nos largou, nem por um segundo.

No momento em que soubemos quando e como eu iria voltar ao Aniqui, os papás ficaram aliviados. Não por se verem livres de mim, mas por se sentirem seguros com a forma como tudo estava a ser preparado para o nosso regresso, minimizando os riscos de nos cruzarmos com esse “bichinho” malvado.

Perante as medidas que os senhores do Governo anunciaram, o Aniqui não tremeu, não refilou, não entrou em pânico, mas arregaçou as mangas e fez o possível para garantir segurança e normalidade a todos nós. E isso deixou os papás muito felizes.

Esta semana passei lá à porta. A mamã foi entregar as minhas coisas.

Já sei que agora vou brincar mais no recreio e cá fora, que tenho que ter alguns cuidados, que já tinha antes de termos vindo para casa.

Os papás sempre estiveram muito orgulhosos pela forma como lavo e desinfecto as mãos; por não estranhar usar máscara, ou ver os adultos também de máscara. Eles sabem que me vou portar bem, porque tenho pessoas excelentes a cuidarem de mim.

Essas pessoas mostraram, ao longo destes 70 e tal dias, que somos mais que números, mais que uma mensalidade ao fim do mês. Que somos realmente uma família. O Aniqui é a nossa família na rua e passou a ser parte da nossa família em casa.

É fácil ter sucesso quando as condições são boas. Quando tudo corre bem.

Mas, quando a estrada se torna sinuosa, é quando vemos os grandes pilotos. É nos mares revoltosos que vemos os grandes comandantes.

Faltam 48 horas para voltar ao Aniqui mas, na verdade, acho que nunca saí de lá.

Em meu nome e em nome dos papás, muito obrigado a todas! 

Obrigado, Aniqui!

Eduardo Sala»

António Pinheiro

Profissional de marketing, músico e corredor por prazer. Corre na estrada, no monte e de um lado para o outro na vida, atrás e à frente dos filhos.