O salão estacou.
De cachimbo numa mão e whiskey na outra, David media cada rosto e preparava-se para, perante os seus inimigos, desfiar a história dos seus últimos vinte e três anos.
Pela primeira vez, desde sempre, aludiu à sua patente militar, ainda para mais com o objectivo de reclamar um privilégio. Mas, sentindo a sua vida perto do fim, decidiu ironizar na cara daquela gente que ansiava por lhe deitar a mão.
A audiência dividiu-se entre a estupefacção e a fúria. O desplante do maior inimigo de todos eles. Ester estava prestes a rebentar mas, ali, era a última a falar. Não pertencia à Lux, era agente mercenária, como já tinha sido da Convénio e só por grandes favores na cama de Pôncio podia assistir à cena. Por sua vez, Miriam tremia de medo e de dor, com receio de cruzar, novamente, o seu olhar com o de David.
David começou:
“Verão de 1997. Estava em casa a matar tempo, entediado até aos ossos. A minha vida fora sempre assim. Enquanto os meus amigos namoravam, praticavam desporto, eram músicos, iam de férias com os pais, eu ficava em casa a ler, ver televisão ou, simplesmente a fazer nada!”
Havia dor e rancor na voz de David. Era visível que as memórias que o assaltavam não eram boas.
“As minhas namoradas eram as miúdas da TV ou as modelos do catálogo La Redoute.
Naquele dia, a meio do mês de Agosto, a campainha tocou perto da hora de jantar. Nem me mexi. Os meus pais estavam em casa. Ouvi vozes e, passados uns segundos, a minha mãe chamou-me e, pelo tom de voz, percebi logo que a coisa não era boa.”
Pôncio interrompeu:
“Nós estamos familiarizados com os métodos de recrutamento da Convénio. Por favor, avance!”
“Não! Se não entenderem isto, não entendem nada!”
David, arriscava. A sua voz era já imperativa.
“Estava a dizer… A minha mãe chamou-me à sala. Para além dos meus pais, encontravam-se lá mais quatro pessoas: um homem de fato e olhar distante, um militar (calculo que Marechal… general, no mínimo), um padre (pelo menos, usava gola eclesiástica) e o Saúl, que viria a ser o meu Mentor na Convénio.”
“Sabe os nomes, ou o papel, dos três desconhecidos?”
“Vim a saber mais tarde que eram as Esferas. Apenas isso. Nenhum deles abriu a boca enquanto lá estiveram.”
A existência das Esferas sempre fora um mito para a Lux. Mas Pôncio acreditava na sinceridade de David. Sentia-o no seu íntimo.
“Então… sempre existem.”
“Eu vi-as. Disseram-me quem eram, acreditei. E, depois disso, estiveram em cada segundo da minha vida. Mas… continuando…
Fiquei, como é claro, surpreendido com a cena. O meu pai torcia os dedos das mãos, visivelmente triste, prestes a romper em lágrimas. A minha mãe avançou para a explicação do que se estava a passar.
Pelos vistos, poucos dias depois de eu nascer, aqueles três homens desconhecidos apareceram lá em casa com outro. Na altura foi o outro que falou. Disse aos meus pais que eu era uma criança especial e que deviam proteger-me ao máximo até eu completar 18 anos. Em troca, a minha família iria receber uma generosa quantia em dinheiro, ao longo desses anos e mais ainda ao chegar à maioridade legal e poderiam orgulhar-se do meu futuro brilhante.”
“Disseram a si, ou aos seus pais, porque era especial?”
“Não. Só soube depois, ao chegar à Convénio. Mas voltando à história…
“Nunca disseram aos meus pais porque é que eu era especial. Mas o dinheiro fazia muita falta. Éramos pobres. Os meus pais sofreram muito com o fecho das indústrias nos anos 80. Nunca ganharam mais que o salário mínimo. Eu preparava-me para ir para a faculdade e falei nisso mesmo. Aí, foi o Saúl que falou. Disse-me que eu poderia ir para a faculdade na mesma e fazer a minha vida normal, mas iria passar a morar com eles, indo a casa no Natal e no Verão. Ou seja, aos dezoito anos ia, finalmente, para um colégio interno… quase…”
“E como reagiu a isso?”
“Honestamente? Pensei… «que se lixe!» A minha vida era um tédio, finalmente acontecia algo inesperado e, aceitando o que me estavam a propor, poderia dar alguma folga financeira à minha família… era muito dinheiro!”
David acentuou a palavra «muito».
“E quando foi conhecer a sua «casa» nova?”
“No dia seguinte. O Saúl apareceu à minha porta, num carro espectacular, vidros fumados… Senti-me um gajo mesmo VIP. Lá dentro já vinha o Miguel, no caminho íamos buscar o Emanuel e, por fim, porque morava mais longe, o Caleb.”
“Já conhecia algum deles?”
“O Emanuel. Era meu amigo de infância. Fiquei tão contente, como surpreendido quando o carro guinou em direcção a casa dele.”
“E depois?”
“Fomos para a nossa nova casa e, depois de vocês nos tentarem matar a todos, fizémos a vossa vida negra durante anos!”