Começava a instalar-se um burburinho na sala e Pôncio teve que, mais uma vez, impôr o seu poder. David sentia que ainda ia causar uma rebelião ali dentro. Estava tudo a correr como planeara, mesmo que isso, eventualmente, lhe custasse a vida.
“David, tenho grande respeito por si, mas essas provocações…”
“Não são provocações. São factos. Imagine o que era estarmos aqui todos, calmamente, a conversarmos e, de repente, explosões, sangue, muito sangue, partes de corpos pelo ar, vísceras… Aquilo que parecia ser um sonho ter-se tornado num pesadelo.”
“Era precisamente aí que queria chegar. Como sobreviveram ao ataque?”
David deixou o olhar perder-se nas memórias, na dor que o consumia. Falava para todos, mas também para si próprio.
“Como sobrevivi a estes vinte e três anos? Como vocês que aqui estão sobreviveram? Como a Ester e a Míriam ainda não estão mortas? A resposta nos livros, nos filmes é coragem. Mas todos sabemos que é o medo que nos mantém vivos. E nós tivemos muito medo. Por isso hoje estou aqui. Estamos aqui.”
“Ou seja, fugiram!”, ironizou Pôncio.
David recuperou a postura. Sentiu a sua fraqueza. Queria dominar. Precisava de tempo para o que estava para vir. Tinha que contar a história toda. Tinha.
“Para perceberem o que se passou nesse dia, é preciso voltar um pouco atrás, novamente.”
Quando chegamos ao Palácio da Convénio, fomos os quatro instalados no mesmo quarto. Como já tinha dito, eu e o Emanuel éramos velhos amigos, longe de imaginarmos esta peculiaridade em comum. O Caleb era o mais calejado. Já trabalhava, apesar de ter a nossa idade era substacialmente mais maduro. Também tinha tido uma infância complicada. O Miguel esperava entrar (e entrou!) em Engenharia Mecânica nesse ano. Era de uma calma que enervava. Mas, consequentemente, era o mais lúcido e clarividente. Já eu, enervava-me facilmente. Precisei de muitas lições de controlo emocional.”
“E sobre o Emanuel? Não tem mais nada a dizer?”
“Ainda somos amigos, mesmo depois de ele ter trabalhado uns anos para vocês e ter tentado matar-me, também… Mas perecebo-o. A Isabel era bem jeitosa e, pelos vistos, dava-lhe tudo na cama. Não o censuro ter preferido a ela do que a mim.”
David retomou a história.
“Após os três primeiros meses no Palácio, em que nós e os restantes recrutas tivemos as mesmas aulas, o mesmo treino, fomos agrupados segundo as nossas competências e foi a partir daí que começou a correr mal.”
“A correr mal? Vocês não eram os melhores entre todos os recrutas?”
“Sim e não. Sim, tínhamos talento, não, não nos enquadrávamos muito na ética da Convénio que, a nosso ver, era demasiado branda.”
“Vocês queriam sangue…”
“Queríamos Justiça. Precisei de muitas aulas de controlo emocional. E o que aconteceu depois deu-nos razão.
Como estava a dizer, fomos agrupados nas Divisões tradicionais da Convénio: o Caleb para a Divisão Operacional, o Miguel para Engenharia, Tecnologia e Comunicações, eu e o Emanuel para Inteligência e Informação, que é como quem diz «Espionagem». E, como disse, foi a partir daí que começou a correr mal.”
“Mas porquê?”
“O Caleb bebia demasiado, o Emanuel apaixonava-se demasiado e eu era muito distraído o que, para um espião, é mau.”
“E o Miguel?”
“Era o único que escapava.”
“Tiveram problemas?”
“Muitos. Muitas lições de controlo emocional. Não fosse o Miguel pôr-nos na linha e não tínhamos chegado ao fim. Na prova final, foi o Miguel que nos orientou. Fizemos um brilharete e foi-nos augurado um brilhante futuro.”
“Essa prova…”
“Era de combate, com fogo real. Houve feridos e por pouco não tinha morrido gente… antes tivesse morrido…”
“O que quer dizer com isso?”
“Pensei que soubesse.”
“Não.”
“Tive a vida da Betel nas minhas mãos. Se a tivesse morto, o ataque, uma semana depois, não teria acontecido. Verdade?”
“Perceberam que ela era a nossa espia no vosso meio?”
“Percebi que não era flor que se cheire. Por isso, não a perdi de vista e a vista até era agradável, mas eu pressentia que algo não batia certo. Mas as lições de controlo emocional…”