“David… juro que não te entendo…”
“Mas vais entender, em breve. Vinte e três anos a, literalmente, dar o corpo às balas, a tudo. Estive quase morto uma série de vezes, vi a morte de frente e mesmo do outro lado. E agora, chegas aqui e pedes-me para me entregar.”
Saúl ficou em silêncio, pois sabia que era verdade. David tinha sido o melhor recruta que já alguma vez tinha visto. O seu futuro como soldado seria, certamente, promissor. Sem dúvida que chegaria a oficial, a líder. Mas tudo se precipitou naquela tarde de Junho, há vinte e três anos, quando o Palácio da Convénio foi atacado e destruído. David fora lançado às feras e agora era um guerreiro solitário que continuava a manter viva a alma de uma organização mais estranha que secreta.
“Eles estão a chegar… Depois dos primeiros cinquenta vêm cem… Já estou habituado a levar no lombo.”
“David, não tornes isto mais difícil.”
“Aviso já: depois de estar lá dentro as coisas serão à minha maneira.”
“Como assim?”
A quietude do jardim foi interrompida por um burburinho de passos, muitos passos. De todo o lado ergueram-se sombras. Os cinquenta.
Da mesma forma que tinha aparecido, Saúl desaparecera. David permanecia calmamente no seu banco de jardim. Fechou os olhos e conseguiu ver claramente os seus cinquenta captores. Em poucos segundos poderia destruí-los, mas a sua mente fixou-se em duas figuras femininas que observavam a cena de longe: Ester e Míriam.
Ambas já tinham trabalhado para ele. Cedo, Ester deixou-se seduzir por uma carreira a solo, trabalhando quase exclusivamente para a organização estranha e pouco secreta que agora o tentava prender. Míriam tinha-o ajudado em várias missões, mas deixou-se seduzir por Ester e acabou por entregar aquele que nunca poderia ser encontrado.
Abriu os olhos e procurou a sua antiga agente. Ela fitava-o ao longe, com o rosto manchado pela culpa. Ester exibia o seu semblante orgulhoso por, finalmente, subjugar o seu antigo chefe. Achava ela…
David sorriu quando cruzou o olhar com Míriam. E, nesse momento, uma dor excruciante invadiu o corpo da mulher. De alto a baixo, cada célula era dor, levando-a a tombar, enquanto se contorcia em espasmos e gritos. Os soldados, apanhados de surpresa, começaram também a cair.
David permanecia calmo e sorridente. Ester avançou em fúria sobre ele, mas um buraco abriu-se sob os seus pés.
“Está na hora de animar isto…” pensou David.
O cenário era bizarro.
Cinquenta soldados fortemente armados, gritando como bebés aflitos, no chão. Uma mulher enterrada com a cabeça de fora, sem se conseguir mexer. Outra mulher num patamar de histeria, para lá da loucura. E um homem calmo, observando a cena a rir às gargalhadas.
“Assim vai ser difícil cumprir o plano do Saúl…”
A sua mente soltou os soldados e iniciou a luta com cada um deles. Os cem já vinham a caminho e, apesar da sua infinita calma, lutar contra cento e cinquenta operacionais, não era fácil. Portanto, tinha que começar a eliminar alguns e depois deixar-se levar, quando o cansaço começasse a retirar-lhe o discernimento. E era importante manter Ester dominada. Acima de tudo, não queria ser preso por ela. Preferia morrer ali mesmo.
O que aconteceu nos minutos seguintes, seria facilmente descrito como um banho de sangue e cabeças decepadas. David, fez o que tantas vezes tinha feito e que até já podia fazer de olhos fechados. A sua espada, que tinha usado pela primeira vez numa noite de Inverno, há vinte e três anos, dançava e rodopiava em todas as direcções, mas com critério bem definido: pescoços.
Mas David nunca deixou de ser humano e os humanos cansam-se. Estava na hora de cumprir o plano e deixou-se atingir, uma, duas, três, muitas vezes… Antes de perder os sentidos conseguiu ver Ester a sorrir e a sair do buraco onde a tinha enfiado. Pelo menos não fora ela quem o prendeu. Via também os espasmos de Míriam a pararem e a jovem recuperar um pouco da lucidez. Viu sombras levantarem-se sobre si. Perdeu o domínio do corpo, da mente e a luz do dia apagou-se.