“Mas o que vem a ser isto?”
Uma voz forte, colocada e afectada, num certo tom “dandy”, ecoou nas profundezas do seu cérebro.
Abriu os olhos e deu por si esfarrapado, no centro de um imenso salão, rodeado por quatro sombras, iguais às que o tinham capturado.
Percebeu que era a sua hora.
“Este homem é o mais alto oficial da Convénio. É nosso inimigo e prisioneiro mas, pelo cargo que ocupa, deverá ser tratado com respeito e dignidade. Levem-no para um banho e para vestir uma roupa lavada e digna. Depois, terei todo o gosto em o interrogar.”
A voz continuava afectada e determinada. David conseguiu sentir a fúria dos soldados que o tinham prendido. Afinal, ele tinha mandado uma série de companheiros deles desta para melhor, não só agora, mas ao longo de muitos anos.
“Olha… lá estão elas…”
O semblante gélido de Ester, contrastava com o ainda presente esgar de dor de Míriam. Não deveria passar tão cedo e não deveria ter passado muito tempo desde que desmaiara.
Fingiu-se fraco, sem forças e deixou-se arrastar pelos soldados.
Levaram-no para um quarto (uma cela?) com cama e uma casa de banho anexa, com um pequeno chuveiro. Havia toalhas e roupa. De facto, não seria um prisioneiro comum e a estadia naquele Palácio seria, no mínimo, interessante.
Tomou um banho retemperante e vestiu as roupas que lhe deram. Calças de ganga simples e uma t-shirt com o símbolo da organização estranha e pouco secreta que agora o capturava: um sol, cortado a meio como se estivesse a surgir no horizonte, com doze raios a despontar para o céu e as letras LUX.
Havia também uma mesinha com chá e café. Serviu-se do chá, do qual era apreciador.
Esperou.
Alguns minutos depois, quatro soldados, visivelmente aborrecidos vieram buscá-lo e levaram-no por uma sucessão de corredores ao imenso salão onde já tinha estado. Percebeu que estava reunido o Estado-Maior da LUX e que, à sua frente, num vistoso trono, sentava-se o dono da voz forte e colocada, o “dandy” que chefiava a estranha e pouco secreta organização, há décadas, talvez séculos.
“David! Finalmente encontramo-nos!”, quase gritou o Grão-Mestre, levantando-se do trono e estendendo a mão em direcção a David.
“Peço desculpa pelos modos dos meus soldados e por não ter conseguido uma farda digna da sua patente mas, muito honestamente, desconheço como são actualmente as fardas da Convénio. Deixe-me dizer-lhe que, apesar de adversários, é uma honra apertar-lhe a mão! Os seus feitos, precedem-no e são admiráveis, mesmo que isso tenha custado muitas vidas à nossa organização.”
David não estranhou os galanteios do homem que tinha à sua frente. Sabia que estava a ser sincero. Pôncio – assim se chamava a personagem que parecia ter parado algures na Revolução Industrial – era famoso por gostar da táctica, da estratégia, do combate, mais do que do resultado final das batalhas.
Apesar de inimigos, o Grão-Mestre da Lux cumpria um escrupuloso código de guerra, que ambas as organizações estranhas e pouco secretas, herdaram de lutas milenares.
Estendeu a mão e retribuiu:
“É uma honra, senhor.”
“Sabe, David, os meus homens, se pudessem, já o tinham morto, não sei antes o torturarem primeiro. Afinal, foram mais de vinte anos de lutas e o senhor ceifou muitas vidas da Lux e não só. Confesso que, também eu, estou ansioso por o castigar e fazê-lo pagar por tudo o que nos fez. Mas antes, sinto que devemos falar sobre tudo o que se passou, não acha? Acho-o uma pessoa fascinante e, neste momento, vale-me mais vivo que morto.”
E, por incrível que pareça, tudo isto foi proclamado num tom jovial. David quase que imaginou um copo de brandy na mão direita de Pôncio.
O diálogo era observado atentamente por Ester e Míriam que ocupavam uma posição lateral. Os oficiais da Lux tentavam, incomodamente, manter a pose do seu líder, mas nos soldados era visível o ódio. David estava a ser analisado de alto abaixo e conseguia ler os pensamentos de todos no salão.
“De facto, temos muito para falar, tanto que serão necessários vários dias.”
“É verdade, meu caro, é verdade. Mas, como sabe, temos, literalemnte, todo o tempo do Mundo.
Podemos começar por umas pequeninas questões?”
“Força.”
Era chegada a hora. Sabia perfeitamente o que lhe iriam perguntar e como iria responder. Portanto, relaxou e divertiu-se.
“Porque se deixou apanhar?”
“Foi uma missão ordenada pelas Esferas da Convénio.”
“As Esferas? Sempre achei que fossem um mito… Então… existem mesmo… e estão a rastreá-lo? São capazes de o vir buscar?
“Como acha que sobrevivemos após o ataque ao Palácio? Foi obra das Esferas. Eu sou obra das Esferas. Quanto ao rastreio, desliguei-o pouco antes de desmaiar.”
“Mas assim, a sua missão deixa de fazer sentido. O objectivo era descobrir onde estamos, certo?
“No momento em que aceitei a missão, deixou de ser da Convénio e passou a ser minha.”
“Porque não matou a Ester e a Míriam?”
“Seria bom de mais para ambas. Quero que a Ester perceba que vale zero à minha beira e que a Míriam sofra mesmo muito.”
“Aqui dentro não vai conseguir nada disso.”
Assim como no jardim, Míriam irrompeu numa gritante agonia de dor. Armas apontaram à cabeça de David mas, ali dentro, o Grão-Mestre tinha poder absoluto.
Pôncio pareceu perder um pouco da portura:
“Não acha pouco cordial atacar um dos meus soldados, na nossa própria casa?”
“Peço desculpa. Foi um reflexo.”
“Porque se desligou da Convénio?”
“Estou farto. Cansado.”
“Não acredito.”
“Pense na minha história, ponha-se no meu papel, sentirá o mesmo que eu.”
“Talvez… Por falar nisso. Está na hora de nos contar tudo. Quantas pessoas compõem a Convénio neste momento?”
“Uma. Eu. Há depois agentes que recruto conforme as missões. Mas já não confio em ninguém.” E olhou para Míriam que se recompunha do último ataque.
“Não acredito.”
“Acha que, na minha posição, iria mentir? Basta um estalar de dedos e eu morro aqui dentro. Na verdade, não tenho nada a perder. Estou nas vossas mãos.”
“Verdade. Admiro a sua coragem e frontalidade.
Tragam uma cadeira a este homem. Vamos ter muito que conversar. Por favor, comece do início. Fale-nos do ataque ao Palácio.Como sobreviveu? Como é que as esferas o salvaram?”
“Sugiro começarmos antes disso. Como fui recrutado. Peça para me trazerem um bom whiskey e um cachimbo, por favor. Já que não tem direito a uma farda decente, David Henriques, Marechal da Ordem Convénio, reclama algum privilégio digno da sua patente militar.”, disse, imitando despudoradamente o tom de voz do seu interlocutor.