António Pinheiro

Profissional de marketing, músico e corredor por prazer. Corre na estrada, no monte e de um lado para o outro na vida, atrás e à frente dos filhos.

Cidadania: sermos “apenas” melhores pessoas

Setembro 14th, 2020

Ponto prévio: sou um gajo um bocadinho inclinado para a Direita, Cristão convicto e praticante. Já fui militante do PSD.

Por isso… (pausa para respirar fundo) fico agastado quando vejo a tentativa de associar a disciplina de Cidanania à Esquerda. Os conteúdos e os objectivos abordados não deviam ser de Esquerda ou Direita, desta ou daquela religião, deviam ser da Humaninade.

Acredito que, apesar de eventuais falhas, a disciplina de Cidadania tem mais virtudes que defeitos. E, essas virtudes, espero eu, vamos vê-las daqui a uns anos:

– quando juízes deixarem de por à solta homens que agridem violentamente as suas mulheres;

– quando desaparecer o provérbio “Entre marido e mulher, não se mete a colher…”

– quando deixarmos de acordar com notícias de pretos que são agredidos, assassinados, enquanto ouvem “vai para a tua terra”;

– quando acabarem as perseguições e espancamentos a transexuais, que acabam a morrer lentamente num buranco imundo (caso “Gisberta”, para quem não está recordado);

– quando um adolescente deixar de ter medo, ou vergonha, ao descubrir que é homossexual, ou outra coisa qualquer e reprimir a sua sexualidade durante anos;

– quando terminar o bullying ou, pelo menos, deixarmos de achar que o bullying é uma coisa normal e que até “faz bem”;

– quando revisores da CP deixarem de assediar passageiras só por causa de um decote e terminar de vez a conversa do “pôs-se a jeito”;

– quando deixarmos de pôr a culpa nas vítimas;

– quando pararem os comentários começados por “Eu não sou homofóbico, mas…”;

– quando deixarmos de olhar de lado para dois homens, ou duas mulheres, a trocarem carinhos;

– quando deixarmos de julgar e condenar as pessoas pela roupa que vestem;

– quando percebermos que a sobrevivência do Planeta está nas nossas mãos e nos nossos comportamentos;

– quando animais deixarem de ser torturados para gáudio da multidão;

– quando formos todos mais empáticos e respeitarmos a diferença, mesmo que não concordemos e não se enquadre nos nossos valores.

Acima de tudo, espero que os meus filhos construam um Mundo onde deixe de ser necessária uma disciplina onde se ensine “apenas” a sermos melhores pessoas.

FOI NA BOLA – O FAIR PLAY É UMA TRETA

Setembro 1st, 2020

Antes de ser o treinador da moda e do regime, ou da moda do regime, JJ era famoso pelos seus tiros no porta-aviões, mesmo que expressos de forma gramaticalmente questionável.

Ao serviço do Braga, depois de ter sido roubado escandalosamente contra o agora seu clube, afirmou: ganhar na Luz, só na PlayStation.

Ao serviço do Belenenses, antes de um jogo contra o agora seu clube, afirmou: o fair play é uma treta.

O povo e a opinião pública tendem a definir o fair play como um conjunto de gestos, ritos e cerimoniais que, na verdade, em nada têm a ver com fair play.

Fair play, no fundo, é competir de forma justa. Nada tem a ver com palminhas, corredores de honra ou mandar a bola fora quando um adversário está lesionado.

Fair play é entrar no jogo para ganhar, dar o máximo para o conseguir e fazê-lo de forma justa.

Tudo o resto é folclore.

Pavilhão de Crestuma. Futebolada de sábado de manhã.

Ela estava à minha frente, redondinha, pronta. Olhei para ela, olhei para a baliza. Mesmo sendo uma nódoa em geometria, cometendo a proeza de, até com a régua, desenhar linhas tortas, percebi que, com determinada força, determinada direcção… era golo.

Na melhor gíria futebolística, puxei a culatra atrás.

Não é que tenha muita força, mas ali, foi alguma.

Só que… uma adversária (sim, tínhamos raparigas a jogar… e muito bem!), viu o mesmo que eu. Viu a redondinha, a linha recta para a baliza e a força que eu preparava para aplicar na bola. Corte providencial, mas o meu pé já não foi a tempo de parar e encontrou, no local onde milésimos de segundo antes estava a bola, o pé da rapariga. Estrondo.

“Oh António! Tu és tolo! Viste o que fizeste?”

Mas eu só queria chutar a bola…

Pedi desculpa enquanto ela se contorcia de dores no chão. Fui rodeado “eh pah… estamos aqui para nos divertirmos… não era preciso isso…”

Mas eu só queria chutar a bola.

Estádio de Braga. Janeiro de 2019. Final da Taça da Cerveja, ou lá o que é…

Oliver Torres está de olhos fixos na bola. E só na bola. Como eu, ele só quer chutar a bola, não para marcar golo, mas para a tirar dali para fora. O jogo aproxima-se do fim e, só agora, é que o adversário decidiu que quer ganhar de forma justa, depois de oitenta minutos de jogo passivo, a fazer de tudo para levar a decisão para os penaltys.

Durante oitenta minutos, só uma equipa teve fair play. Dentro do campo, na relva. Só uma equipa, a do Oliver, lutou para vencer. A outra escondeu-se na manha, na “chico-espertice tuga”. 

Oliver Torres está de olhos fixos na bola. Ele só quer chutar, mas um adversário, como a minha adversária, naquele momento, atravessa-se. Penalty.

A equipa do Oliver, pobre Oliver, acaba por perder no desempate.

A frustração é visível, audível, sensível… 

Não há espaço para mais nada no coração de quem deu tudo e perdeu de forma tão inglória.

As redes sociais, a opinião pública, o povo, vocifera contra a equipa do Oliver, por falta de fair play?

JJ tinha razão. O fair play, como nos querem vender, é mesmo o treta.

E o Oliver e eu, só queríamos mesmo chutar a bola.

Do consenso ao confronto

Julho 26th, 2020

Ouvi hoje na TSF alguém dizer que, nos nossos dias, quem discute não procura consenso, mas confronto.

Lembrei-me de imediato de um amigo que dizia “na minha rua há gente que, se for preciso, paga para andar à porrada.”

Por isso as discussões são cada vez mais esforços vãos e estéreis. Não vale a pena argumentar, explanar pontos de vista se, do outro lado, só encontramos mentes duras, fechadas e que só querem fazer barulho.

“Andar à porrada”.

Não interessa ter, ou não razão. O que interessa é gritar e, se possível, insultando e diminuindo o outro.

Por alturas do 25 de Abril, apanhei um post no meu feed que dizia “e não adianta virem para aqui dar a vossa opinião, porque não me interessa”. Poética forma de defender a liberdade.

“Não me interessa.”

Tudo resumido em três palavras.

E o consenso, a paz de espírito, a tranquilidade até são vistos e interpretados como sinais de fraqueza, quando a História do Mundo nos mostra exactamente o contrário.

Paz.

O país é demasiado pequeno…

Junho 24th, 2020

É a frase repetida exaustivamente por aqueles que são contra a regionalização, bairrismos, picardias entre regiões, ou o simples orgulho pelo local onde se nasceu e/ou vive.

“Ah… tu nem és do Porto!”, ouço igualmente muitas vezes.

Nasci em Mafamude e vivi quase 40 anos em Crestuma. Entretanto, já morei em Olival e agora em Pedroso. Tudo em Vila Nova de Gaia. É só atravessar o rio. O mesmo rio que banha as duas cidades.

O mesmo rio que serve de cenário aos festejos de S. João.

Estudei cinco anos no Porto e desde 2002 que lá trabalho. Casei com uma portuense nascida em Santos Pousada, freguesia do Bonfim, que tem Santa Clara como padroeira.

Talvez isso não faça de mim portuense (nem quero), mas não posso amar uma cidade que me diz tanto e onde passo mais de oito horas do meu dia?

Não posso amar a cidade onde estudei, amei, chorei e cresci como ser humano?

Posto isto…

Sim, Portugal é um país demasiado pequeno para guerras internas. Mas é igualmente demasiado pequeno para haver tanta desigualdade entre Lisboa e o resto do País. O problema de Portugal e que me leva a ser defensor convicto da regionalização, não é Lisboa vs. Porto. É Lisboa vs. o Resto do País, de Trás-os-montes ao Algarve. Do Algarve à Madeira e aos Açores.

Face a outras regiões sistematicamente esquecidas por sucessivos governos, o Porto nem se pode queixar muito. Não por qualquer benesse que venha da Capital, mas porque em séculos de história sempre teve que fazer das Tripas Coração e remar contra a maré. E com isso cresceu e tornou-se o que é hoje.

Desde a história das tripas, passando pelo Cerco e pelas invasões francesas, que o Porto e as suas gentes tiveram que dar o corpo ao manifesto pela Cidade e pelo País. Sim, pelo País.

A História está escrita. Queiramos saber lê-la e interpretá-la.

E quando falamos em Porto, falamos nas cidades que orbitam as suas fronteiras e que com ele têm uma relação visceral, de Espinho a Vila do Conde.

Veio a Pandemia e o Porto levou com a primeira onda de choque. As inúmeras relações comerciais com Espanha, Itália e até mesmo a China, enfiaram o vírus directamente nas veias do Norte de Portugal. Porque o Porto alimenta as zonas industriais de Vila Real a Aveiro.

E em Lisboa, sentados no seu trono imperial, chamaram-nos de tudo e mais alguma coisa. O Porto agonizava. Lisboa troçava.

Mas, aqui, não ficamos “a ver se chove”. Enquanto o Ministério da Saúde e a DGS deitavam as mãos à cabeça, o Porto fechou, mostrou como se faz. E, desde logo, soubemos que, este ano, o S. João era à varanda, à janela, no quintal.

Era, seria, foi no único sítio onde faz sentido: no coração dos portuenses, gaienses e de todos aqueles que nesta noite iriam folgar pelas ruas.

O Expresso veio dizer que não. Foi um enterro, dizem eles.

Um país tão pequeno e não conheceis os vizinhos.

Hoje, a DGS, lançou o seu apelo para os cuidados a ter na noite de S. João. Hoje, quando estamos todos de ressaca e ficamos a saber que Lisboa nos passou à frente nas estatísticas mais tristes da Pandemia. Bravo!

Mas, voltando atrás…

Enquanto o Ministério da Saúde e a DGS deitavam as mãos à cabeça, o Porto fechou, mostrou como se faz. Rui Moreira saltou para a frente da batalha. Andou pelas ruas. Enquanto que, com uma mão, pedia-nos para ficar em casa, com a outra impediu que nos impusessem novo Cerco. Porque o Porto não é só Porto. E de Vila do Conde a Espinho, há pessoas que trabalham no Porto, recorrem aos hospitais do Porto, precisam do Porto.

A tempestade parece ter passado e o Porto começou a abrir. Mas à vontade, não é à vontadinha.

O espectáculo da superstar do confinamento foi adiado (adiado… imaginem se fosse cancelado) e caíu qualquer coisa para os lados da Sampaio e Pina em Lisboa. Quando somos os reis da empatia, temos destas coisas. Sentimos as dores dos outros, mesmo que os outros não se queixem. Mesmo que seja só um arranhãozinho no joelho.

Uma frase de Rui Moreira foi retirada do contexto, por alguém que tanto usa as redes sociais para se insurgir contra o mau uso das redes sociais, e voltaram a atirar-nos com o rótulo de parolos e incultos, fanáticos por futebol, ignorando que, por exemplo, até já houve concertos na Casa da Música, por estes dias.

Eles não sabem, nem sonham o que é ser do Porto.

Vai ficar o futebol, dizem eles. Mas curiosamente foram eles que se insurgiram quando, mais uma vez, Rui Moreira, tentou adiar o tal jogo de futebol.

Uma no cravo, outra na ferradura.

S. João, Santo António, e todo o coro celestial cantaram a Karma Police bem alto na noite de ontem.

Dias do fim – parte 15 – a última

Maio 31st, 2020

Foi a 12 de Março que abracei o meu filho mais velho pela última vez, sem saber quando voltaria a fazê-lo. Inventei anestesia para a distância.

Foi a 13 de Março que saí do meu emprego, sem saber quando voltava. Inventei-me um novo profissional.

Foi a 14 de Março que deixei ao meu pai um frasco de gel, o número do SNS24 e mil e uma recomendações que sabia que ele não compreendia e que, provavelmente, iria ignorar. Inventei um antídoto para a angústia.

Foi a 14 de Março que comecei a contar os dias e contei-os até perder a conta.

Inventamos formas de encher os dias.

Foi a 15 de Março que tentei ver televisão pela manhã, enquanto fazia exercício. Aguentei 5 minutos. A TV, não o exercício. Fiz muito exercício. O mais que pude. Na elíptica, nos 25 degraus de acesso a casa, nos 100 metros da minha rua. 79 dias, treinei 63.

Voltando atrás… Peguei no comando e comecei a mexer nos botões. Parei na HBO. Vi alguns filmes, mas o melhor foi ter terminado de ver a Teoria do Big Bang e foi impossível não rir, rir, rir e depois chorar com aquele final.

Planeando meticulosamente cada saída ao exterior. A Teresa tornou-se numa gestora de stocks e prazos de validade.

A minha exigência profissional nunca foi tão grande. 79 dias, trabalhei 77. Só descansei na Páscoa e no aniversário da Teresa.

Fizemos pão, bolos e até permitimos à Leia o luxo de passar uma semana no “Pet Hotel”.

Pintamos, desenhamos, moldamos, rasgamos ou simplesmente preguiçamos.

Voltei a ler e a escrever.

Encomendamos fatos de super-heróis, brinquedos e panikes de chocolate.

Cantei os parabéns ao meu filho pelo whatsapp, num dia que vivi com o coração em lágrimas, mas com o conforto e calor de dezenas de mensagens de amigos, no mais difícil dos dias.

Para a nossa família, Abril é mês de festas e celebrações. Convenci meia-dúzia de Confrades a ficarem acordados até à meia-noite, para surpreenderem a Teresa com uma videochamada de parabéns. Adiamos os festejos do nosso namoro para data a designar e demos o nosso melhor para termos uma Páscoa digna desse nome e um aniversário de casamento como deve ser.

Fizemos vídeos malucos com a nossa Confraria, porque a Música nunca parou dentro de nós. A Teresa cantou Pedro Abrunhosa, para nós, para o Mundo, mas principalmente para a sua Mãe…

Como não sei cantar, à minha Mãe escrevi… e desabei em lágrimas sobre o teclado…

Gravei música para missas, via-sacras e procissões. Longe, voltei a estar perto das V.E.

E ainda inventei um solo de saxofone para um esplendoroso vídeo final. E que bem que soube ser apenas “mais um”.

Inundamos os directos da Paróquia com corações e no final havia sempre uma videochamada, entre lágrimas e sorrisos.

Ficamos a conhecer melhor os pais dos amigos do nosso filho, partilhamos alegrias, tristezas, frustrações e aquelas coisas de pais.

A casa ficou (e ainda está) virada do avesso. Mas, a dada altura, simplesmente desistimos de a arrumar. O Eduardo há-de ser um bom decorador de interiores.

A mesa da sala tornou-se escritório e sala de reuniões. Vestíamos uma roupa à pressa para as videochamadas, mas só da cintura para cima.

Veio o calor e montamos uma piscina no terraço, onde almoçávamos beijados pelo sol. Inventamos formas de sair à rua.

“Eduardo! Xiu! Está a ligar um cliente da Mãe!”

“Xiu! O Pai vai ligar para o trabalho dele, fica caladinho um bocadinho…”

Escrevi dissertações sobre o Jesus Christ Superstar e descobri a Sara Bareilles. Reencontrei-me com os Radiohead e ouvi Pink Floyd incessantemente.

E, por falar em reencontros, foi no dia 25 de Maio que os meus filhos se reencontraram. O Eduardo quase saltava pela cadeira do carro fora e o Lucas, tão pouco dado a demonstrar emoções, sendo das crianças mais emotivas que conheço, ofereceu-me um dos seus sorrisos mais genuínos que, para mim, valem mais que qualquer beijo ou abraço.

E foi no dia 30 de Maio que o Eduardo reencontrou a Madrinha, que não aguentou as lágrimas…

Alguém disse que a “Vida é a arte do Encontro”. Os últimos meses transformam-se na arte do reencontro. Os reencontros vão acontecendo, aos poucos, como a Natureza que acorda na Primavera após o Inverno. O Verão já não tarda…

Amanhã é dia de mais reencontros. Nos empregos, na creche…

Desisti de tirar lições do tempo que agora finda. Há algumas feridas, mas ainda hoje o Eduardo explodiu de alegria ao ver um arco-íris…

Dias do fim – parte 14

Maio 30th, 2020

A crónica de hoje é diferente.

Ao longo dos últimos 78 dias, em linha com as actividades propostas pelo Aniquibebé, creche frequentada pelo meu filho Eduardo, fui registando num diário as suas brincadeiras, actividades, curiosidades… um pouco de tudo o que ele ia fazendo cá por casa.

Esta é a última página desse diário. Escrita por mim, obviamente, mas tentando ver as coisas da perspectiva dele.

Serve também para, sem qualquer tipo de obrigação, mostrar a nossa (minha, da Teresa e do Eduardo) gratidão ao Aniqui e às suas incríveis profissionais, que souberam responder da melhor forma a todos os desafios levantados pelo COVID-19.

É bom saber que entregamos o nosso filho a estas mãos e a estes corações que choram, riem e amam connosco.

«ANIQUI- À DISTÂNCIA DE UM ABRAÇO – O FIM

Lembro-me dos últimos dias. O papá deixou de poder entrar no Aniqui. Tínhamos que desinfectar as mãos. As coisas começaram a ser diferentes.

Lembro-me do último dia.

Os papás foram buscar os meus amigos mais cedo. Havia algo de diferente. Ao fim do dia, como em tantos outros dias, eu era o único menino, à espera do meu papá. Mas, naquele dia, tão estranho, não estava sozinho. Todas as funcionárias do Aniqui estavam lá comigo. A Tete, as minhas Isabéis… É claro que me senti importante. 

Então, o pai chegou.

Como sempre, tentou animar-me e ficou feliz por me ver, mas os seus olhos estavam diferentes. Assim como os olhos da Tete, das Isabéis e das outras…

Parece que ninguém sabia muito bem o que dizer, ou fazer.

O papá, levou embora a minha mochila, a bata e todas as minhas coisas do Aniqui. Até parecia que nunca mais voltaria e percebi isso na despedida. “Até um dia destes…”

Não foi um até amanhã, ou um bom fim de semana, ou um boas férias.

Ninguém ali, naquele momento, sabia quando eu iria voltar ao Aniqui e rever os meus amigos.

Também os olhos do papá estavam diferentes.

Em casa, os papás explicaram que andava na rua um “bichinho” muito mau e que teríamos que ficar em casa durante algum tempo.

Olha que bom! Passar o tempo todo com os papás…

Os dias tornaram-se diferentes, mas sempre com o Aniqui presente. Quase todos os dias era acordado com notícias da Isabel, da Belinha, da Tete…

Foram canções, jogos e brincadeiras.

Houve um dia especial. A Belinha mandou um vídeo a cantar-nos a canção dos bons dias, como se estivéssemos na sala. Reparei que, à medida que canção ia-se aproximando do fim, os olhos dela iam ficando diferentes.

O mesmo se passou noutras ocasiões com a Isabel.

Mas eu gostava de as ver e matar saudades.

Também via as fotos e vídeos das brincadeiras e trabalhos dos meus amigos.

Todos os dias, mesmo em casa, estava no Aniqui.

Os papás ainda tentaram que eu fosse fazendo as actividades… mas eu tenho o meu feitio. Desculpem.

Quando alguém fazia anos, os amigos apareciam todos em quadradinhos no computador do papá e cantávamos os parabéns.

E todos juntos construímos uma história, que teve direito a banda sonora composta pelos papás.

Já para o fim, eu estava cansado e preguiçoso. O ritmo do teletrabalho dos papás foi aumentando. Mas o Aniqui nunca nos largou, nem por um segundo.

No momento em que soubemos quando e como eu iria voltar ao Aniqui, os papás ficaram aliviados. Não por se verem livres de mim, mas por se sentirem seguros com a forma como tudo estava a ser preparado para o nosso regresso, minimizando os riscos de nos cruzarmos com esse “bichinho” malvado.

Perante as medidas que os senhores do Governo anunciaram, o Aniqui não tremeu, não refilou, não entrou em pânico, mas arregaçou as mangas e fez o possível para garantir segurança e normalidade a todos nós. E isso deixou os papás muito felizes.

Esta semana passei lá à porta. A mamã foi entregar as minhas coisas.

Já sei que agora vou brincar mais no recreio e cá fora, que tenho que ter alguns cuidados, que já tinha antes de termos vindo para casa.

Os papás sempre estiveram muito orgulhosos pela forma como lavo e desinfecto as mãos; por não estranhar usar máscara, ou ver os adultos também de máscara. Eles sabem que me vou portar bem, porque tenho pessoas excelentes a cuidarem de mim.

Essas pessoas mostraram, ao longo destes 70 e tal dias, que somos mais que números, mais que uma mensalidade ao fim do mês. Que somos realmente uma família. O Aniqui é a nossa família na rua e passou a ser parte da nossa família em casa.

É fácil ter sucesso quando as condições são boas. Quando tudo corre bem.

Mas, quando a estrada se torna sinuosa, é quando vemos os grandes pilotos. É nos mares revoltosos que vemos os grandes comandantes.

Faltam 48 horas para voltar ao Aniqui mas, na verdade, acho que nunca saí de lá.

Em meu nome e em nome dos papás, muito obrigado a todas! 

Obrigado, Aniqui!

Eduardo Sala»

Dias do fim – parte 13

Maio 29th, 2020

Esqueçam. Não vai ficar tudo bem. Nem tudo mal. Vai ficar tudo na mesma. Já passou. Já está longe. É só em Lisboa agora.

Mas nem é o vírus que chateia. É a humanidade, ou a falta dela.

É o inenarrável assassinato do George Floyd e o aproveitamento político e social do mesmo. E se o George Floyd fosse branco? Amarelo, rosa, azul? Haveria posts, artigos, dissertações? Ou seria mais uma vítima do musculado sistema policial americano? Tiraríamos uma selfie ao lado do cadáver com uma bonita hashtag? Ou passaríamos ao lado?

São os combates entre claques…

É o egoísmo. O egoísmo nas suas mais variadas formas. Em todas.

A pandemia não revelou um mundo melhor, não mostrou o melhor das pessoas. Pelo contrário, mostrou quanto podemos ser maus.

Esqueçam.

Nos supermercados já toda a gente se atropela e empurra. A desinfecção das superfícies ocorre quando alguém se lembra. E num parque espaçoso, cheio de lugares vagos, as pessoas continuam a estacionar em cima das linhas.

É impossível «retirar ilações absurdas de uma situação excepcional”, porque ficou tudo na mesma.

Continua a haver quem seja anti-vacinas, a negar as mortes e a dizer que isto foi tudo uma “campanha da comunicação social”.

E há quem continue a ser mau. Já não sei quantos cães mortos num saco, em Bragança. Nem os animais inocentes escapam à estupidez humana.

Vai haver uma procissão em Matosinhos. Num formato especial, dizem. Acredito. Mas uma banda filarmónica vai tocar, num autocarro, 22 músicos. Estarão em segurança? Acredito. Mas fica o desprezo moral e ético por todas as filarmónicas deste país que continuam com as estantes fechadas, as partituras na pasta e os instrumentos no saco. Acredito.

Sabem uma coisa? Que se lixe! Salve-se quem puder. O juíz de partida está com a pistola no ar, mas já todos os cavalos arrancaram e nem há pista. Cada um vai como quer, por onde quer. A meta é o in finito. A sociedade já não é sociedade.

Nós é que somos bons, nós é que sabemos e à nossa volta é terra queimada.

O mundo não acabou, nem mudou. Continua a mesma merda.

Dias do fim – parte 12

Maio 28th, 2020

Quando era mais novo, a minha Mãe dizia-me muitas vezes: “criticas tanto os outros… quem é que te critica a ti?”

Eu achava que podia criticar os outros, porque era diferente: eu era melhor.

Essa minha soberba e arrogância custou-me muitas coisas.

Com a idade aprendemos que, afinal, não somos assim tão bons e que, afinal, às tantas até merecemos umas boas bojardas.

Com a idade aprendemos a olhar para as coisas de forma mais compreensiva, sem julgamentos, apenas para tentar entender porque acontecem.

No fundo, qual deve ser a postura de um investigador perante um crime: saber o que aconteceu, ou acusar alguém?

Caindo num lugar comum, com a idade aprendemos a calçar os sapatos do outro, vemos o Mundo com outros olhos e percebemos porque é que uma aitude que a nós pareceu estranha, errada, condenável, aconteceu.

É claro que também sucede, após termos mudado de perspectiva, continuarmos sem entender “porquê”. Mas, pelo menos, tivemos a coragem de ir ao outro lado.

E é mesmo uma questão de coragem. Sairmos de nós, das nossas crenças e preconceitos.

António Pinheiro

Profissional de marketing, músico e corredor por prazer. Corre na estrada, no monte e de um lado para o outro na vida, atrás e à frente dos filhos.