António Pinheiro

Profissional de marketing, músico e corredor por prazer. Corre na estrada, no monte e de um lado para o outro na vida, atrás e à frente dos filhos.

O Zé. O Rapaz das Orelhas Grandes. O Charlie. A Hipocrisia.

Maio 12th, 2015

Vamos chamar-lhe Zé. Zé tinha um problema. Tinha vários até. Mas concentremo-nos “no” problema. Quando alguém aproximava as mãos, ou outro objecto, dos olhos de Zé, estes piscavam a uma velocidade frenética.

Os outros meninos descobriram isso e descobriram, simultaneamente, que era divertido ver os olhos de Zé piscarem qual iluminação de Natal descontrolada.

Então, os outros meninos vinham do outro lado da rua só para verem os olhos de Zé a piscar; faziam círculos no recreio, em volta de Zé. Era a galhofa geral. Zé acreditava que quando crescesse, os outros meninos iriam respeitá-lo, mas não.

No autocarro para a C+S, a cena repetia-se. Todos queriam sentar-se perto do Zé, não porque ele fosse um gajo porreiro, mas para poderem agitar os dedos em frente aos olhos de Zé e ver os famosos tremeliques dos seus olhos.

A vergonha e o ódio pareciam não ter fim na mente e no coração de Zé.

O azar do Zé foi ter vivido este martírio ao longo dos anos 80 e 90. Não havia bulling. Era normal os mais fortes gozarem com os mais fracos. Era normal os burros como calhaus gozarem com os bons alunos (Portugal e o seu culto pela mediocridade…). Mais um problema do Zé: até era bom aluno.

Ninguém queria saber. Para além da cena dos olhos, Zé ainda levou com uma alcunha pouco abonatória.

Um dia, chegou aos ouvidos do pai do Zé e da restante família. “Eles chamam-te isso e tu deixas? Impõe-te!” Mas como? Eles eram mais e mais fortes.

Zé não pediu nada daquilo. Zé nunca soube que aquilo ia acontecer. Zé não esqueceu nem vai esquecer. Zé lembra-se de todos eles, de cada rosto, de cada expressão de chacota, sempre que nos dias de hoje atinge (mais um) sucesso pessoal, profissional, desportivo.

Alguns, ainda se cruzam com ele na rua, no shopping, no Facebook e cumprimentam, acenam, como se nada tivesse acontecido. “Afinal, eram crianças… era normal.”

Hoje há o bulling e talvez o Zé não tivesse passado por este calvário sozinho, sofrendo em silêncio.

O rapaz das orelhas grandes foi ao Ídolos porque quis e sabia muito bem o que lhe poderia acontecer. O rapaz das orelhas atravessou a rua para junto dos meninos maus, porque quis. O rapaz das orelhas enfiou-se no meio do círculo de mauzões do recreio, porque quis. O rapaz das orelhas sentou-se junto aos bullies do autocarro, porque quis.

E depois? Não somos todos Charlie? Qual a diferença entre as caricaturas de Maomé e a caricatura do rapazinho do Ídolos? O que torna os jornalistas do Charlie Hebdo uns heróis e os tipos da SIC uns sacanas? Mas então há, ou não há, limites para o humor?

(é que outro dia não havia limites… e de repente começou a haver… sinto-me perdido e o Zé também)

Hipócritas. Todos são hipócritas. Como os rufias que pegavam com o Zé e hoje em dia até o elogiam no Facebook e o cumprimentam no shopping.

Consegui, carago!

Março 18th, 2015

Não me ocorria dizer mais nada, no passado Domingo, por volta das 17h45, quase 10h depois de ter partido do centro de Valongo para as serras envolventes.

Os Trilhos do Paleozóico, na sua versão ultra com 48km e 2500 D+, eram o meu primeiro grande objectivo de corrida para 2015. As dificuldades começaram na fase de preparação. Com pouco tempo para treinar, restou-me inscrever em todas as provas possíveis, para me ir habituando à “coça”.

Cheguei a Valongo com o Trail de Santa Iria (pior que algumas Ultras, dizem…) e a Ultra de Santa Luzia nas pernas.

Confesso que, à excepção de Santa Luzia, nunca senti medo de uma prova. Por isso, antes da partida estava tranquilo e confiante, apesar de tudo o que se diz sobre o “Paleozóico”.

O Luís Rodrigues tinha pedido “reboque” e eu queria ajudar, mas cedo percebi que ele ia sentir muitas dificuldades e eu queria chegar ao fim:

“Luís, isto é para chegar ao fim…”

“Então vai para a frente…”

Nos primeiros kilómetros fui olhando para trás, para tentar perceber o ritmo dele, mas no topo da serra de Santa Justa compreendi que teria que abdicar da companhia do Luís (desculpa, amigo…) para levar o meu barco a bom porto.

A primeira fase da prova foi bastante positiva. Estava a sentir-me bem e a desfrutar da prova como ela merece.

A dada altura ouço “Eeeeeehhhhh Duas Faces Alleeeeez! Duas Faces Allez! Duas Faces Allez! Duas Faces Alleeeeeez!” Lá vinha como uma bala o meu “Team Manager”, que optou pela prova de 23km, a “derreter” o João Colaço e com um avanço considerável sobre o Armando Teixeira! Ah, pois é! É só para verem a fibra do pessoal deste Team! (16º na classificação geral…)

“Vou usar-te como lebre!”

“Não faças isso que ainda tens muito que correr!”

As ultrapassagens dos atletas mais rápidos dos 23km fizeram-me abrandar o ritmo. Por mim passou o resto da comitiva Duas Faces, o Ricardo Dantas e o Rui Andrade, com quem troquei palavras de incentivo e até um comentário ao Benfica vs Braga da noite anterior.

Foi por esta altura que comecei a cruzar-me com o Ângelo Senra. Já o tinha visto noutras provas e sabia que ele tem um ritmo parecido com o meu. Era uma boa referência de andamento.

4h de prova, 24km percorridos. A Teresa liga-me e as suas palavras foram melhor que qualquer isotónico. Ela não se apercebeu, mas eu chorei do outro lado…

No abastecimento dos 28,5km a “fila para o autocarro”: uns 15 – 20 atletas à espera da carrinha da organização para desistirem (vim a saber mais tarde que nesse ponto desistiram 50 atletas). O Ângelo estava lá também, mas pronto para a luta. Chega o Paulo Serra e arrancamos os 3.

“O gajo vai a falar ao telemóvel, ou já está completamente maluco?”

A montanha dá para isto… mas o Ângelo ia mesmo a falar ao telemóvel.

O carrossel continuava e íamos trocando posições, até ao abastecimento da “crioterapia”. Lá estava a Celina Ferreira, irmã dessa grande máquina de montanha chamada Vitor Ferreira, cheia de boa disposição e palavras de ânimo. “Houve uns que se atiraram de cabeça!” (e o que se passou a seguir vocês já viram nas fotos…)

Estava na hora de enfrentar o pior…

Começava a luta pelo “pódio”. Íamo-nos revezando no “comando” da prova, até nos encontrarmos novamente no abastecimento da Doce Papoila. Aí, mais uma vez: “Eeeeeehhhhh Duas Faces Alleeeeez! Duas Faces Allez! Duas Faces Allez! Duas Faces Alleeeeeez!” O Team Manager da Duas Faces e CEO da Doce Papoila estava doido com a minha prova.

“Como estão as cãibras?”

“Zero?!?!”

“Sim. Nem uma. Estou é cheio de fome!”

“Os outros chegam aqui todos rotos e atiram-se para o chão… tu só queres comer!”

E desatei a comer como um alarve. Estava mesmo cheio de fome e de vontade de chegar ao fim.

Últimas palavras de apoio do Sérgio e da Ana Duarte e bora para o Elevador (ou Eleva a Dor).

Decidi que iria olhar o menos para cima e sempre para os pés, um atrás do outro. A tarefa de me concentrar no chão tornou-se complicada quando aparece o Carlos Natividade com a sua famosa sineta a incentivar o pessoal. Que momento épico de Trail! Nós ali… humildes maçaricos, a termos o grande Mestre a puxar por nós! Enorme!

Chegados ao topo, o Ângelo decidiu que a vitória era dele e arrancou (talvez auto-motivado pelo enxorrilho de palavrões que debitou durante a subida…). Eu e o Paulo decidimos “recuperar da subida”, leia-se “ir nas calmas”.

Quando a parte mais técnica da descida terminou, comecei a correr e levei o Paulo atrás de mim. O raio da meta nunca mais chegava.

“Só faltam 200m!”

Irra, que 200m intermináveis!

Mas então vi a Teresa, a minha sogra, gente que não conheço de lado nenhum (ou até conheço…) a aplaudir. Carago! A meta!

O Luís Pereira, grande arquitecto deste empeno de proporções épicas vem cumprimentar-me e eu nem lhe consegui dizer nada de jeito. Estava mais preocupado em parar o relógio, como se mais 20 segundos fossem fazer a diferença em quase 10h de aventura.

“Olha o Pinheiro! Tu não tens juízo?” Era o Rui Pinho, com um sorriso genuíno, feliz por me ver terminar… e que bem que me soube!

Depois, finalmente, a minha verdadeira meta: a minha Teresa!

O meu dia estava ganho. Só me apetecia dançar, rir, chorar, comer… Sentia que me ia dar qualquer coisa. Mas voltei a olhar para a Serra e senti-me simplesmente tranquilo e orgulhoso.

Consegui! Carago!

Éramos.

Março 14th, 2015
Éramos.
Poderíamos ser a seita, o grupo, a comandita, ter uma designação ou um nome qualquer. Mas simplesmente éramos.
Um laço misterioso nos unia. Para todo o lado, por todo o lado. Nas salas, nas escadas, em qualquer recanto do Conservatório, das sedes das nossas bandas e cafés adjacentes.
Quando não tocávamos todos juntos, íamos aos concertos uns dos outros e, no final, parávamos sempre no mesmo sítio.
Mal entrávamos, o rapaz já sabia que teria que servir “Príncipes” a todos, bastava confirmar o número de Cachorros, assim as parcas poupanças o permitissem.
Dos bolsos saía um ou outro cigarro.
E ali estávamos.
Um dia eu não tinha dinheiro. “Vamos à Praia de Salgueiros, tem lá um Bar fixe.”
“Mas eu não tenho dinheiro…”
“Não é por causa disso que vais deixar de curtir com o pessoal…”
E eu fui. E ele pagou… a mim e a toda a gente.
“Tu és tolo!”
“Gosto de ver o pessoal a curtir!”
A vida levou-nos para pontos distantes. Cruzamo-nos por aí. Porque o laço misterioso, chamado “Música” insiste em aproximar-nos.
Alguns são Maestros, Professores; outros apenas músicos nas horas vagas.
Casados, com filhos, sem filhos e recasados.
A Vida passou, mas quando os junta o tempo recua. Voltam a ser, aqueles.
Aqueles que, quando entravam no Conservatório ao sábado de manhã, os alicerces tremiam.
Alicerces em sentido lato do termo.
Ficavam por ali o todo dia. Mesmo que não tivessem uma única aula. Havia sempre uma sala livre para sessões de estudo colectivo (bonito eufemismo para descrever o que se lá passava…), havia sempre uma mesa no café e o centro comercial ali ao lado, com a apetecível sala de jogos a desviar-nos a assiduidade e os últimos trocos na carteira.
O tempo passou.
Já não há a sala de jogos. Há empregos, trabalho, famílias, responsabilidade. Mas também há por aí “Príncipes” e Cachorros: à Festas e Romarias onde o laço misterioso nos junta.

Texto dedicado a todos os meus amigos do Conservatório Regional de Gaia, nomeadamente aos colegas da Orquestra de Sopros e das quatro bandas filarmónicas de Gaia.

A Janela Mágica

Dezembro 28th, 2013

Uma das memórias mais fortes do Natal da minha infância tem a ver com aquela janela.

Não sei se seria mágica, mas irradiava magia.

Com a devida antecedência (não tanta como é agora frequente) iluminava-se. Pisca-pisca. Acende apaga. Vermelho, azul, verde, amarelo, laranja.

Nada daquelas luzes XPTO dos nossos dias.

Um rectângulo colorido, na rua que continua exígua, apesar de ser a central.

Gostava de passar ali à noite, só para a ver brilhar.

No interior, brinquedos e mais brinquedos. Num espaço incrivelmente pequeno. Como era possível, naquele cubículo caber tanta coisa? Mas cabia.

E as luzes adornavam o misterioso e encantador pórtico.

Entrando na lojinha, o balcão surgia logo ali à porta, não deixando espaço para mais de duas três pessoas.

O interior era ainda mais recheado. Cada centímetro quadrado era devidamente aproveitado. Ali vendia-se praticamente tudo.

Mas o que interessava eram os brinquedos. E o papel de embrulho. E os rolos de fita colorida, que dariam lugar aos lacinhos, enroscados com a ajuda de uma tesoura. E o dispensador de fita cola, azul e laranja, tradicional da “Tesa Film”.

A loja do senhor Augusto, carinhosamente conhecido como sr. “Belinha” (apesar de o próprio não apreciar a designação) era um recanto de magia.

Dali saiam muitos dos presentes que, na Noite de Natal, estariam junto aos sapatinhos.

Dali saíram alguns dos meus presentes e dos primeiros presentes que ofereci à minha família, quando já tinha juntado uns troquitos.

Era impossível resistir, passar e não parar. Aquela pequena janela tinha um poder encantador.

Quando ela se iluminava, sabíamos que o Natal estava próximo.

Confesso que cheguei a sonhar que a janela se abria e eu podia pegar em todos os brinquedos.

Agora, a janela está fechada e o sr. Augusto velho e doente.

Mas, em cada Natal, a janela continua iluminada na minha memória.

Remodelação

Maio 16th, 2012

Caros leitores,

Brevemente, este blog será reestruturado para se transformar no site de divulgação da minha actividade profissional, enquanto marketeer e enquanto músico.

As secções de poesia e crónicas serão mantidas, mas não actualizadas, passando esse tipo de assuntos a ser divulgado na minha página de Facebook.

Tudo resto será removido, passando apenas a serem publicados conteúdos relacionados com as minhas actividades na área do Marketing e da Música.

Até já!

Capas negras

Maio 12th, 2012

No meu tempo era proibido usar o cabelo apanhado com o Traje.

No meu tempo era proibido usar maquilhagem com o Traje.

No meu tempo era proibido usar jóias com o Traje.

No meu tempo era proibido usar óculos de sol com o Traje.

No meu tempo era proibido usar relógios de pulso com o Traje.

No meu tempo a capa usava-se no ombro esquerdo.

No meu tempo, à noite, a Capa era traçada e não se exibiam Insígnias.

No meu tempo, o salto dos sapatos das raparigas era curto e as saias usavam-se pelo joelho.

No meu tempo, o Traje usava-se completo… era impensável ver alguém sem a batina… só de colete…

…olho para o Facebook e para a TV e vejo estas e muitas outras regras do Traje serem violadas…

O Código da Praxe mudou assim tanto desde 1997?

António Pinheiro

Profissional de marketing, músico e corredor por prazer. Corre na estrada, no monte e de um lado para o outro na vida, atrás e à frente dos filhos.