António Pinheiro

Profissional de marketing, músico e corredor por prazer. Corre na estrada, no monte e de um lado para o outro na vida, atrás e à frente dos filhos.

Ode na noite

Janeiro 29th, 2009

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E como me senti só
Cada gota de chuva
Era como uma faca
Que me rasgava a pele
E abria no chão
Poças de lama e sangue

Senti-me nu
Perdido
Gelado

Era o vazio
A escuridão
O silêncio apenas interrompido
Pela chuva que caía

Lentamente
Fui-te perdendo

Não mais te senti
Os meus lábios
Perderam os teus
A minha pele esqueceu a tua
Os teus seios tornaram-se uma miragem
O teu corpo uma ilusão

O teu perfume perdeu-se na treva
E as tuas palavras foram surdina
Os teus olhos apagaram-se
E o teu cabelo voou com o vento

E a vida
Deixou de fazer sentido

Nem os poemas
Nem a música
Nada vale nada
Sem a tua presença
Sem aquele brilho
Que só tu sabes dar à minha vida

Volta
Preciso daquela música
Que compões num piano de estrelas
Preciso dos poemas que nascem no teu corpo
Preciso que me beijes com o teu olhar

Preciso de nadar na tua pele
Mergulhar em beijos sem fim
Sentir as tuas unhas cravadas no meu coração

Agarra-me
Prende-me
Possui-me e não me libertes

Não mais te deixes perder na noite
Não mais permitas que a tempestade nos afaste
Não mais adormeças sem mim
Não mais me deixes adormecer sem ti

Porque somos um só
Somos a escultura do amor
Que na luz de uma noite se tornou maior

Agora eu tenho o teu nome
E tu tens o meu
É o meu sangue que corre em ti
É o teu ar que respiro

São os teus cabelos que penteio
É a minha barba que aparas

Já não existimos

Somos uma constelação que brilha no céu

Somos o Amor

Sonhei

Janeiro 24th, 2009

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Sonhei
Que ao teu lado acordei
E os teus olhos os meus tocaram
E para sempre ficaram
No corpo que desejei

Vi-te
Para mim estavas nua
Um corpo em oferta
Uma pele descoberta
De tom branco como a lua

Possuíste-me
Naquele amanhecer eu fui teu
Cada toque, cada olhar
E no momento de acordar
Em ti meu corpo pereceu

Purificação II

Janeiro 22nd, 2009

A sede de matar não lhe saía da boca. Recordava-se ainda do prazer que viver uma semana antes, o sangue nas vestes do padre, o terror nos olhos dos estúpidos fiéis a eficácia da sua lâmina.
Agora queria mais. Sentia que aquela noite tinha sido apenas o início. Precisava continuar o seu trabalho de purificação. Era necessário derramar mais sangue. Mas de quem?
Não foi preciso muito para descobrir uma simpática idosa que proclamava conseguir ver aquilo que os médicos não viam. Vivia nos subúrbios, numa zona já bastante rural. Teve que atravessar uma longa estrada pelo meio do monte para dar com a aldeia, depois o seu jipe mal passava nas estreitas vielas que conduziam ao ermo isolado onde ficava a casa. “Que mau gosto!”, pensou. A casa estava revestida de azulejos azuis, com um pequeno jardim, excessivamente ornamentado, onde se sobressaía uma Nossa Senhora de Fátima, devidamente acompanhada pelos três pastorinhos. “Que desplante”.
Viu as pessoas. Mulheres, gordas, mal arranjadas, feias. Provavelmente recorreram à velha curandeira para perguntar porque é que o marido andava com outras. Bastava olharem para o espelho. Rostos tristes, amargurados, procurando naquela velha a resposta para os problemas e o caminho para a felicidade.
Ficou ali toda a tarde, observando. As consultas demoravam cerca de meia-hora. Algumas mais, outras menos. Era um entra e sai. Táxis, carros de aluguer. Maridos impacientes a fumar. Crianças procurando motivos de distracção.
Ainda não era o momento certo. Voltaria no dia seguinte.
E, no dia seguinte, voltou.
As pessoas pareciam as mesmas. Pensou em esperar que todos fossem atendidos, para ele próprio entrar e ter a sua consulta. Mas parecia um rio de gente sem fim. Então, quando viu uma família a sair, avançou. Novas clientes preparavam-se para entrar, mas ele impediu. Bastou um olhar para aterrorizar aquela pobre gente. Subiu as escadas, sendo recebido pela filha da velha. “Não o vi a esperar.” “Mas acredite que estou há muito tempo à espera”.
Não disse mais nada. Foi conduzido à sala de estar, o consultório. A velha estava sentada num cadeirão de madeira, segurando uma cruz e um terço. À semelhança do jardim, a decoração era excessiva. Cristaleiras a abarrotar de cacos. Uma mesa com artigos para venda. “O merchandising da crendice”, pensou. Amuletos, imagens de santos, pagelas.
“Então, meu filho, o que o trás cá?”
Sentou-se e fechou a porta.
“A porta não pode estar fechada”.
“Pode, pode…”
“N…”
“Chiu! Quem vai falar sou eu.”
A velha preparava-se para chamar pela filha mas, num instante, viu a espada do homem apontada à sua garganta.
“Podes gritar e morrer de imediato, ou podes ouvir-me recitar a causa da tua condenação”.
A velha não disse nada. Ele concluiu que era sinal da escolha da segunda hipótese.
“Vou-te matar, porque és uma velha maluca que se aproveita da ingenuidade das pessoas.”
“Não sou maluca, tenho um poder… um poder que uso para ajudar as pessoas.”
A velha falava tranquilamente, como se não tivesse uma espada apontada à garganta. “Típico dos loucos”, pensou.
A velha continuou. “Não me aproveito de ninguém, não cobro dinheiro, cada um dá o que quer.”
“Cínica! Pensas que não sei quanto ficam os trabalhos que fazes a altas horas da noite em capelas perdidas nos montes? Chegas a ganhar mais numa noite que muita gente num mês inteiro. És uma prostituta!”
A velha começou a chorar. Agarrava com força a cruz e o terço. O homem sentiu-se feliz e, num único golpe, separou a cabeça do resto do corpo. Rápido e indolor. “Tive pena de não a fazer sofrer mais”.
Usando sempre a espada como ferramenta, rasgou as roupas da velha e abriu-lhe o corpo, expondo os órgãos.
Sentia-se extasiado ao ver a facilidade com que a lamina atravessava o cadáver.
Limpou a espada à toalha de renda que estava sobre a mesa. Abriu a porta encontrando a filha no corredor. A mulher não conteve agudos gritos de dor ao ver a cabeça de sua mãe nas mãos do homem. O que terá acontecido depois de ter visto o corpo todo aberto?
Saiu. Os clientes que esperavam, ao verem o macabro troféu, ficaram estarrecidos… um ou outro não conteve os vómitos.
“Tomai a cabeça da vossa bruxa. Como podeis ver, era um ser humano como outro qualquer. O resto do corpo está lá em cima. Tive o cuidado de o deixar aberto para verem que era perfeitamente normal… talvez um pouco de gordura mais, mas isso todos vocês têm. Agora, voltai para as vossas vidas patéticas. Estais doentes? Ide ao médico. Tendes problemas? Procurai psicólogos. Os vossos maridos andam a encornar-vos? Olhai para o espelho. Esqueçam as bruxas… porque eu vou matá-las a todas. E mato quem se meter à minha frente. Boa tarde a todos.”
Atirou a cabeça para o chão. Acendeu um cigarro e saiu, com a mesma calma com que tinha entrado.

Chuva II

Janeiro 19th, 2009

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Estava só
Perdido comigo mesmo
Nu

Veio a chuva
E tu vieste com ela
E nunca mais estive só

Então a chuva despiu-te
E em ti peguei
Nua

Eras frio
Eras água
Eras doce

Em ti mergulhei
Em ti matei a minha sede
Em ti renasci

Lá fora
a chuva caía
E cá dentro caías em mim

O ritmo aumentava
O da chuva
O teu e o meu

Então uma explosão
Lá fora
E dentro de nós

Purificação

Janeiro 16th, 2009

Queria matá-lo. Com as suas próprias mãos, da forma mais dolorosa que encontrasse. A ele, a outros e outras como ele. A este com mais intensidade, por se esconder por trás do título de “padre”, ao qual acrescentava ainda o título de Dr.

No entanto, era mais um como os outros e as outras. Um charlatão, um cínico… este ainda mais cínico, por ser “padre” e por ser Dr.

“São filhos da p*** como tu que dão mau nome à Igreja, vais arder no fogo do Inferno e sou eu que te vou atear, cabrão!”

O ódio banhava o seu corpo de alto abaixo. Sentia-se cegamente guiado por um único objectivo: manchar de sangue as vestes sacerdotais daquele homem e depois ficar a vê-lo morrer. Cuspiria no seu cadáver.

Sentia-se poderoso, capaz de enfrentar qualquer coisa. Estava na hora de pôr fim ao embuste e de dar um exemplo para os outros. Se corresse bem, este seria o primeiro. Depois faria o mesmo a todos os outros. Mataria um por um. Com violência, com dor, com muito sangue.

“Sangrar estes pulhas é algo de divino”.

Vestiu-se de negro, como a ocasião o exigia. Retirou da parede a valiosíssima espada samurai, que muitos pensavam ser meramente decorativa. Desconheciam, contudo, que a lâmina era afiada… muito afiada e que com um simples toque rasgaria pele, carne, ossos e tudo o mais que encontrasse no seu caminho.

Escondeu a espada no interior do casaco comprido.

Caminhava a passos largos e decididos em direcção à igreja. As luzes estavam acesas. Confirmava-se que aquele era o dia do culto secreto.

“Óptimo! Os otários vão ver a queda do Mestre. E se algum se meter no meu caminho, traço-o também.”

Entrou na Igreja já com a espada na mão, levantada à sua frente. O templo estava cheio de olhares em transe. Lentamente os presentes foram-se apercebendo do estranho que invadia o seu espaço com uma espada. A cena era de tal modo inesperada que ninguém, nem a própria vítima, teve reacção.

Primeiro um braço, depois outro… e o sangue jorrava. A espada cortava um corpo humano como se fosse manteiga. Depois, uma estocada no coração e, por fim, a lâmina atravessou o pescoço. Um fio de sangue surgiu lentamente na pele branca do sacerdote, contrastando com as golfadas que saíam dos ombros e do coração.

Com um sorriso nos lábios, esticou dois dedos na direcção da testa da vítima e, com um gesto subtil, completou a separação da cabeça do resto do corpo. Mais sangue.

A carcaça que restava do corpo daquele padre caía agora por terra.

Na plateia pessoas gritavam, desmaiavam, choravam, mas ninguém tinha coragem de se aproximar do assassino.

Limpou o sangue da espada à indumentária do cadáver, guardou-a novamente no casaco, acendeu um cigarro e saiu calmamente da igreja, sem que ninguém ousasse tocar-lhe.

Dança Comigo

Janeiro 2nd, 2009

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Dá-me a mão
E vem dançar
Prende-me no teu olhar
E jamais me libertes

Gira
Rodopia
Voa
Tira o meu corpo do chão
Afunda a terra debaixo dos meus pés

Não deixes a música parar
Fá-la crescer dentro de ti
Sente o ritmo e dança
E leva-me ao fim do Mundo

Gira
Gira
Rodopia
Voa
Desliza ao som do meu coração

Dança comigo
Pois só contigo quero dançar
Contigo quero sentir esta música
Bem dentro de mim
Bem dentro de ti

Prende-me no teu olhar
E jamais me libertes
Cerca-me no teu sorriso
E leva-me ao Céu
Dançaremos na lua
Faremos das estrelas o nosso salão
Anjos tocarão
para este baile sem fim

António Pinheiro

Profissional de marketing, músico e corredor por prazer. Corre na estrada, no monte e de um lado para o outro na vida, atrás e à frente dos filhos.