As manhãs frias de Abril dão lugar às tardes frias de Setembro. É o cheiro a Outono que se aproxima, os dias que ficam mais curtos.
Parece que ainda ontem acordávamos estremunhados para mais uma época filarmónica e nisto ela chega ao fim.
Vinte despiques, com treze bandas diferentes.
Muitos kilómetros de Águeda a Monção, entre Douro e Minho, entre o Porto e Vila Real.
Foi mais uma época de poeira nos sapatos, suor no rosto e felicidade na Alma.
Semana após semana, parecia que o corropio não teria fim.
“Vertiginosamente” estávamos no “querido mês de Agosto”, no qual adormecíamos e acordávamos com a farda.
Foi a época dos reencontros: em Saudel, os Carlos (Mendes e Pereira) vieram dar-nos um caloroso abraço e o tempo recuou vinte, trinta anos.
Reencontrei o clarinete: o Daniel pôs a máquina como nova e redescobri o fascínio do instrumento. Das dores iniciais na embocadura, até ao gozo indescritível naquele andamento lento do “Arco-Íris”, ou na correria da “Húngara”.
Foi tudo isto e muito mais. Memórias que de tão grandes e eternas, não cabem num ecrã em branco: baquetas, monta-desmonta percussão, palhetas, monta-desmonta clarinete, corre para a Igreja, ensaia o salmo, viagens, palcos, coretos, copos, sestas, sorrisos, festa, rock… Rambóia.
“…e temos a Rosa Evangélica.”
De 1994 a 2024, trinta anos de Filarmonia. Como é possível que, ao cabo de três décadas, a emoção continue renovada? Que magia é esta que, no dia seguinte, nos deixa um vazio no peito e a ansiar “vertiginosamente” pela próxima manhã fria de Abril?
Aviso prévio: as óperas de Wagner são longas. Logo, este “Clássico” também vai ser. Tirem uns bons minutos para ler e ouvir.
Depois de uma longa ausência, volto aos “Clássicos Filarmónicos” para abordar uma obra sobre a qual sempre quis falar, mas da qual me faltava um bom registo sonoro e visual.
“Lohengrin” é um clássico, não por ter sido uma obra muito tocada no passado, hoje em dia ainda menos, mas por se revestir de uma aura de inacessibilidade, daquelas partituras só ao alcance das grandes bandas. Um velho amigo meu, por exemplo, para referir a qualidade da sua banda dizia sempre “nós tocamos o «Lingrin»!»
Nunca os ouvir tocar o tal «Lingrin», mas a verdade é que poucas bandas tinham a obra na estante.
Felizmente para mim e, permitam-me a ousadia e vaidade, para o nosso universo filarmónico, o Maestro Hugo Oliveira lançou a sua seleção da ópera de Wagner no reportório da Marcial de Fermentelos, para a época 2023.
«Conheci o Lohengrin na década de 90 quando comecei a tocar nas filarmónicas, na banda da Trofa. Nessa época, e apesar de já estar “reformado”, o prof. Gomes era sempre convidado pelo maestro Francisco Ferreira para dirigir duas peças do repertório da banda: Ecos de Espanha e Lohengrin. Apesar de ser um puto que estava a começar, sentia já que quando o prof. Gomes subia ao palco a banda era, imediatamente, outra, e no Lohengrin era algo de único. A minha paixão pela obra vem desde aí… Passado uns anos, quando fui maestro na ACMA, após concluir o arranjo da “Boris Godunov“, dediquei-me a transcrever o Lohengrin, tendo como base o arranjo que se tocou na Banda de Música da Trofa e também a partitura da ópera que obtive no IMSLP. Para isso, ouvi a ópera na íntegra (nunca o tinha feito) e fui apontando as secções que gostaria de acrescentar. Comecei o trabalho, demorou uns meses valentes. Cada secção era melhor que a anterior e quando dei por mim… Tinha quase meia-hora de música!… Nunca tive a oportunidade de a trabalhar na ACMA, mas na Marcial de Fermentelos consegui fazê-lo. Não tocamos o arranjo na íntegra, porque senão, em despique, monopolizavamos o tempo do concerto só pra nós! Talvez um dia me arrisque a fazê-lo em concerto…»
…e, caro Hugo, o arranjo está soberbo, resulta muito bem tanto em arraial, como em concerto. Contudo, permite-me destacar dezasseis compassos. Aqueles dezasseis compassos, já perto do final, sempre em crescendo. Um crescendo contínuo de intensidade e daquela emoção tão Wagneriana. Um momento de elevação para quem ouve e para quem toca.
No ano em que se assinalam 210 anos do nascimento e 140 da morte de Wagner, faz todo sentido recuperarmos “Lohengrin”, estreada em Weimar, Alemanha, a 28 de agosto de 1850 sob direção de Franz Liszt, amigo próximo de Wagner que, para além da música, escreveu o libreto.
“A história de Percival (ou Parsival) e seu filho Lohengrin, o cavaleiro do cisne, provém da literatura medieval germânica, especialmente do Parzival, de Wolfram von Eschenbach, e da sua continuação anónima, Lohengrin, inspirada na saga de Garin Le Lorrain (ou Garin le Loherin), a qual integra a Gesta dos Lorenos, ciclo de cinco canções de gesta dos séculos XII e XIII, escritas em loreno românico.
O enredo decorre durante a primeira metade do século X no Ducado de Brabante (na atual região de Antuérpia, Bélgica, no rio Escalda). O falecido duque do Brabante confiara seus herdeiros – Elsa e Gottfried – à tutela do conde Frederico de Telramund. Frederico deveria ter esposado Elsa, mas, tendo sido recusado por ela, casa-se com Ortrud, descendente de uma estirpe de príncipes pagãos, cujas divindades são dotadas de poderes mágicos. Para vingar a afronta sofrida por seu marido e para que este possa herdar o ducado, Ortrud transforma Gottfried em cisne, convencendo Frederico a acusar Elsa de fratricídio.” (fonte: Wikipedia)
Aqui fica a seleção da ópera “Lohengrin” de Richard Wagner, por Hugo Oliveira, numa interpretação da Banda Marcial de Fermentelos e registo de Damião Silva.
Há pouco mais de um ano, estava determinado a terminar a minha vida filarmónica. Tantos anos, tantas madrugadas de Domingo, arruadas e procissões intermináveis, concertos para ninguém, “não posso, tenho ensaio…”
Uma pandemia e a descoberta que os Domingos existem para lá dos arraiais.
Uma conversa circunstancial com um velho amigo e em menos de uma hora realizava um sonho antigo, um desejo de ambos. O recomeço.
As coisas acontecem quando têm que acontecer.
“Bem-vindo à Marcial.”
E começou uma viagem onde tudo soava à primeira vez. Aos 42 anos voltei a ser menino, a vestir uma farda com emoção, a acordar cedo sem resmungar.
Uma época que passou num sopro, de Vilar de Figos a Fermentelos, passando por Macinhata do Vouga, Rio Tinto, Forjães, Rio Mau, Vila Chã, Montalegre, Melres, Gens, Espadanedo, Perrães, Valinhas e Crestuma.
Crestuma, a terra que me viu nascer e crescer, onde toquei à distância de uma lágrima para o meu pai e para o meu filho, onde o coração pesou mais que a farda e as baquetas. Crestuma, onde 16 anos de desterro se esfumaram em 16 horas de emoção. Onde a Marcial deu tudo pelo seu Maestro. As marchas de Crestuma foram fermentelenses por breves minutos e o Hugo saiu “em ombros”: “Miguel! Miguel! Miguel!”
Que orgulho, meu amigo!
Em Melres, outro Miguel, o Mota, veio tocar connosco e viajamos para trás e para a frente no tempo.
A dada altura comecei a fotografar as multidões que nos seguiam. “Ainda alguém ouve bandas?”
Centenas, milhares de pessoas, de manhã à noite. Arraiais em silêncio para ouvir Wagner, Tchaikovsky ou Mussorgsky; em festa ao som de Scorpions ou… Toy!
A Filarmonia é assim do Povo para o Povo. Tudo tem o seu espaço.
Das entradas imponentes às despedidas apoteóticas. As viagens de carro com o Afonso, o Carlos, o Chico, o Daniel, o Noémio e a Rafaela, filha de dois amigos de sempre.
Amigos novos, no palco, na tasca dos finos, nas refeições. O orgulho de fazer parte de um naipe que tem tanto de talentoso como de espirituoso: o Zé, o Hélder, o Leonardo, o André e o Pedro (que agora são também “Rambóias”).
E tudo isto passou num sopro, um recomeço que ainda está no início.
A Banda da Trofa da segunda metade da década de 90, foi das melhores que já ouvi até hoje. Dirigida por Francisco Ferreira, que sucedeu ao mítico, histórico e icónico professor António Gomes, era uma verdadeira banda “all star”. Reunia alguns dos maiores (perdoem-me a expressão) “craques” da música à época, alguns já com carreiras consolidadas, outros que despontavam, muitos que hoje em dia continuam ligados à filarmonia, como maestros, executantes, professores.
Só para citar alguns nomes, por ordem alfabética:
Abel Pereira, Acácio Silva, Ana Maria Ribeiro, Bernardo Alves, Carlos Germano, Daniela Anjo, Fernanda Alves, Fernando Ribeiro, Gil Miranda, Hugo Oliveira, Isabel Anjo, Iva Barbosa, João Alves, Jorge Almeida, Jorge Madureira, Júlio Senra, Liliana Reis, Lino Pinto, Manuel Luís Azevedo, Manuel Moura, Nuno Pinto, Paulo Martins, Rosa Oliveira, Sílvia Janete, Telmo Barbosa, Vitor Matos…
…todos passaram pela Banda da Trofa.
Uma banda que “debulhava” um reportório de grau de dificuldade elevado e que incluía este “Concertino” de Arie den Arend, escrito para tuba, ou bombardino solo, executado à época por Júlio Senra. Era uma obra que se destacava principalmente por ser raro, para não dizer único, uma banda apresentar uma peça solística para este instrumento.
O “Concertino” era de tal forma marcante na estante da Trofa que foi gravado em CD pela mesma.
Sobre o compositor, pouco se sabe, a não ser que nasceu em Pernis, a 3 de fevereiro de 1903, e faleceu em Roterdão a 22 de fevereiro de 1982. De 1916 a 1925 estudou órgão, teoria musical e composição. Foi maestro, professor e organista, dedicou-se principalmente à música para metais.
Na Internet não abundam os registos da peça, pelo que tive que recorrer a esta gravação, ao vivo, da Banda La Primitiva de Alborache – Valencia, com Andres Carrascosa Perez como solista.
CLÁSSICOS FILARMÓNICOS -“Então ainda não falaste desta?”
Estaremos todos de acordo que “Manuel Joaquim de Almeida”, feitas as contas, será a marcha mais tocada em entradas, despedidas e não só.
Mas esse lugar tende, cada vez mais, a ser disputado por outra “marcha” que, na verdade, é um “pasodoble”, mas que o compositor sempre insistiu que fosse considerado “pasacalle”. Um “pasacalle” que já ganhou o estatudo de “Clássico Filarmónico”.
Só podia falar do, ou da, “Xàbia”, de Salvador Salvá Sapena.
Mas há alguém que nunca tenha tocado o, ou a, “Xàbia”?
No entanto, o fenómeno “Xàbia” extravasa a Península Ibérica.
É impossível saber quantas vezes o “Xàbia” foi executado em todo o mundo desde que foi publicado em 1976. Este “pasacalle” levou o nome da cidade Xàbia praticamente aos cinco continentes e tornou-se uma das referências mundiais na música deste estilo.
Mas qual é o segredo desse sucesso? Como é que “Xàbia” apaixona músicos, maestros e público, da Bolívia ao Cazaquistão? Na verdade, a característica mais importante da peça é a sua simplicidade.
Miguel Salvà, filho do compositor:
“Quando o meu pai começou a compor, era uma obra extensa, muito densa”.
Isso foi no início de 1976. Ao longo da primeira metade do ano, Salvador Salvà fez a banda Xàbia – da qual ele era maestro – ensaiar a música repetidamente. E foi retocando-o, simplificando-o, de mais para menos em comprimento, até encontrar a medida certa na introdução. Apesar de já ter quase 50 anos na época, começou a desenvolver a capacidade de criar harmonia, já que durante o seu serviço militar tinha contactado com grandes arranjadores. Em agosto de 1976, decidiu que a obra estava pronta, tendo sido publicada no final do ano.
“Xàbia” foi composto, justamente, para ser tocado pelas ruas durante as festas e começou a espalhar-se sem parar. Além de Espanha, a França foi o primeiro país em que esta música se enraizou. Foi rapidamente ligada ao mundo das touradas mas também a outros eventos festivos. E ainda está presente. Tanto que o pasodoble “Xàbia” serviu de banda sonora para o filme “Le fils à Jo” lançado com sucesso em 2010.
“Xàbia” também cruzou o oceano, primeiramente no México e espalhando-se à restante América Latina.
Essa fama mundial levou a que “Xàbia” fosse tocado em lugares tão distantes quanto a Ucrânia e até mesmo o Cazaquistão.
“Nem hino, nem letra”. A partitura de “Xàbia” destina-se apenas a isso, como música ligada à festa. Não é um hino. E não havia letra. O compositor criou-o apenas com música. As letras que estão atualmente anexadas à peça foram adicionadas por outros.
Salvador Salvà (Xàbia, 1927-2011) deixou a sua marca no Centro Musical Artístico de Xàbia, não só pela composição do “pasacalle” tão universalmente conhecido. Durante os 9 anos em que foi maestro (1969-1978), a banda viveu dois momentos históricos: primeiro, a incorporação de mulheres na entidade e, segundo, a primeira viagem ao estrangeiro, especificamente para a Alemanha.
Hoje, 18 de Abril, o Grande Curador do Reportório Filarmónico, autor de muitos dos vídeos desta rúbrica, Damião Silva, completa mais um aniversário e, por isso, faz todo o sentido partilhar esta marcha, de autoria de Vitor Resende, composta em sua homenagem.
Aqui fica na interpretação da Banda Marcial de Fermentelos, sob a direcção de Hugo Oliveira (e comigo ali no bombo).
Parabéns, Sr. Damião! Espero encontrá-lo, muito em breve, numa romaria algures por aí:
Por incrível que pareça, estava perfeitamente convencido que já tinha dedicado um artigo a esta obra, um clássico a todos os níveis. Mas não. Estava no fundo da pasta à espera de vir para a estante dos Clássicos.
“Poeta e Aldeão” estreou-se como música incidental para uma comédia de Karl Elmar, com o mesmo título, mas viria a ser transformada, após a morte de Suppé, numa opereta em três actos.
Contudo, foi a sua abertura que ficou popularizada no reportório sinfónico e filarmónico. É um verdadeiro hit nos arraiais de Norte a Sul de Portugal.
E sim, os arraiais estão a regressar.
Este é um daqueles exemplos que demonstra que uma obra sinfónica para ser bela, não precisa ser difícil. Contudo, a sua “facilidade” é aparente. Já vi muito bom clarinetista a dar nós nos dedos a tocar isto.